quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dez Anos Depois...(O olhar teimoso)

Dez anos depois...

Tu te pendurava no meu pescoço e me esperava alçar vôo pela janela. Num afago me batizava com super-poderes que eu jurava ter. Eu olho para todos os lados do meu apartamento vazio: vejo as coisas encaixotadas, uma barata morta num canto, a poeira balançando em cima de uma pilha de livros como se fizesse hola num estádio lotado. Em algum canto ficam as marcas dos anos e as brigas absurdas, bobas e necessárias que rasgaram o tempo ali. No espelho da sala meu reflexo não me mostra herói algum, meu avental de cozinha não parece capa, nem de herói cubano subdesenvolvido, nem hollywoodiano. Desculpa. Não me sinto nenhum tipo de herói.

Eu me perdia no teu riso. Era assim quase todos os dias. Tu te enrolava no meu peito, arrancava uns pelinhos e mandava eu não ser fresco, não reclamar de dor, daí a gente ria junto. Eu era o ator das tuas comédias favoritas, e tu escrevia elas no meu corpo com lápis de olho, batom, hidratante. Um monte de letras narrando um monte de mentiras que teimavam em se repetir. Daí eu desligava o abajur e ficava de olho no teu sono, como sentinela. Como vigilante. Até o meu sono me vencer sem trégua nenhuma, e tu sorria como se pouco importasse. Eram minhas derrotas favoritas.

Eu acordava e te via enrolada numa toalha que mais parecia uma capa. Aí tu era minha heroína, corria na minha veia e pelo quarto, até eu te lembrar que tu não era mais criança para aquilo. Pura birra, eu que não fantasiava mais. Já não era mais herói de nada, não salvava ninguém, nem a mim mesmo das minhas péssimas idéias. Meu calendário pulava o dia do veterano. Eu não me encontrava às quartas-feiras pra jogar xadrez com algum louco de guerra ou vilão numa camisa de força. Eu era o garoto envelhecido que te amava, e que salvava o mundo dum mal mais inventado que os moinhos do Quixote. Quanto mais eu inventava, mais tu sorria. E quanto mais tu sorria, maiores eram os loucos que eu enfrentava. O problema era a loucura, sempre. E quem me salvava dela era sempre tu, eu acho.

Dum canto o chefe de polícia, o diretor de teatro, o presidente, todo mundo me acena, é a deixa para perder o controle, me entregar a um grito no meio da chuva, visto de cima por uma platéia incrédula. "Vamos celebrar a derrota!" Aí vem o gosto de cerveja quente na boca. Não, nada disso. Se tu pudesse me ver agora, me veria um pouco triste, um pouco choroso talvez. O barulho do vidro quebrado me batia segundo sim, segundo não. O trânsito parando ao redor era assustador. Os flashes de memória vão se ensanduichando, um no colo do outro. Ninguém te deixava tão extasiada com histórias do cotidiano como eu. Não tinha heroísmo ali, no contar as histórias, os cacos de vidro do pára-brisa e os vergões no teu pescoço que o cinto pregava.

Não. Recordar não é viver. Recordar é morrer muitas vezes de mãos atadas. Eu me levanto com alguma revolta preguiçosa pulsando no corpo. Deixo de lado a fantasia de vestir e a de pintar na frente dos olhos. Chuto uma das caixas com a palavra "Frágil" escrita em letras grandes. O som de coisas quebrando me é familiar, como um vizinho que chega sempre na mesma hora que eu, sempre vindo de um trabalho indiferente de classe média. A gente nunca deu bola pros vizinhos. Nem pra classe média. Recordar não é viver, é matar. Quando tem algo fora do lugar, a lembrança só tinge de um tom confuso o que era simples e ao alcance das mãos. O apartamento vazio e encaixotado me soa quase assim. Enquanto fecho a porta atrás das minhas costas me dou conta do meu novo super-poder, do meu fado heróico: a habilidade de não ter memória nova de nada. Aí eu começo a cantar uma música do Frank Sinatra enquanto me esqueço de assoviar.

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