domingo, 4 de julho de 2010

Uma doce recordação (de lugar algum)


Não esperava ver ninguém naquela noite, estava com as mãos atadas num canto do volante esperando o sinal abrir. Uma leve garoa caía muda e as ruas me levavam para dentro da cidade, pelo túnel da perimetral, com seu interior vermelho amarelado, e os ocasionais pedestres se refugiando na marquise da saída. Vou ficar no meu canto, fumar meu cigarros e demorar um século para terminar minha bebida, até ser constrangida a pedir outra, então, ficar olhando os cubos de gelo trazerem o marrom do uísque para uma cor escura clara, de mel, de carvalho. Com o rosto apoiado no cotovelo, vou acompanhar os ventiladores de teto girarem, reclamar deles sem dizer uma única palavra. Não vou dar bola para a mancha de porra perto da barra do meu vestido azul. Algumas mulheres reclamam ao dirigir de salto, não sei se não tenho disposição ou simplesmente me acostumei.

Pela manhã eu encontrei uma espécie de caroço no meu seio esquerdo, não parece nada. Me lembrei da Virgínia, que me disse na fila do banco, semana passada, que o auto-exame de seio era o máximo de contato íntimo que ela tinha. Masturbação havia se tornado algo enfadonho, as vigorosas corridas no parque foram gradualmente sendo substituídas por caminhadas rápidas na frente de casa. A sabotagem aos cuidados com a alimentação se mostrava a melhor companhia. O celular toca, mas, eu nunca atendo enquanto estou dirigindo. O sinal abre.

As luzes das janelas parecem felizes, consigo imaginar as famílias dentro dos apartamentos, os prédios velhos do centro, sempre quis morar num deles, tenho dinheiro pra isso, não seria difícil empacotar os livros, o jogo de doze pratos quase novo e o gato. Gatos não gostam de mudança, provavelmente Napoleão pularia pela janela e correria para o apartamento antigo, na Goethe. Eu poderia dar o gato para Virgínia, tentar a companhia de peixinhos ornamentais. Algo silencioso e agradável. Um lugar para estacionar, sempre tem um lugar pra estacionar, será que isso diz algo sobre o bar? Ou sobre mim? A Viviane certamente teria uma opinião sobre isso. Ela sempre tem opiniões sobre tudo. Já deve ter uma tese sobre o caroço no meu seio, mesmo sem saber de nada.

Ana tá na mesa sozinha, eu deveria dizer oi, antes de ir para a minha mesa, mentir que estou esperando alguém. Mas isso levaria a mais perguntas e mais mentiras, no fim teria de sentar com ela, o que não é nada mal, só não é bom. Eu deveria ser uma amiga melhor, pensar menos em mim. Rir das piadas sem graça das pessoas e sorrir com polidez sempre que requisitada. Saí sem sutiã, não tinha nenhum limpo. Tudo bem, esse vestido não marca. Minha calcinha não é sexy, mas também não tenho pretensão de mostrá-la para ninguém, não hoje, não esse mês. Não que o sexo em si seja ruim, só que, depois de um tempo, começa a envolver certos rituais tediosos, beijos intermitentes, banho antes, banho depois, dietas, carinhos sinceros. Depois de um tempo, trepar passa de um evento significativo a meia hora perdida num dia.

“Oi Ana.”
“Eu não quero desculpas, não quero papinho de amigas no bar. Eu quero um beijo.”
“... Oi Ana.”

Tento sorrir, escondo a culpa embaixo da língua e molho um pouco os lábios.

“Teu vestido tá manchado de porra. O que andou acontecendo, hein?”
“Não sei, não tinha visto. É porra mesmo?”
Claro que é. Bebo um gole do uísque aguado dela e me acomodo na cadeira. Olho para os ventiladores e não dou bola para a mão dela na minha coxa.
"Eu tinha pensado nisso tudo que tu fala..."
"Eu te conheço. Ou tu não acredita ou tu acha um absurdo."
"Cansei de não acreditar, acho que só não tenho mais paciência pra dar bola."
"É que tu não se importa mais comigo."
"Ou com nada, de um certo modo."

Aí vem aquele silêncio que nos é muito familiar.

“No que tu tá pensando?”
“Não lembro de ter pensado nada o dia inteiro.”

Sorrio, mais uma vez, os dentes bronzeados esperando o primeiro cigarro da noite.

(repostagem, 2009)