domingo, 1 de novembro de 2009

Faça por mim (... o que eu fiz por ti)


“A saudade que um dia eu tive, me ensinou a enterrar na contramão... Deixando os carros passarem por cima... Olhando em outra direção...”

Escolha a vida, escolha sorrir. Assim cantava o refrão da música. Laconicamente, assim terminavam os shows. Bernardo exausto, ensopado com o próprio suor, batendo no piano com uma violência íntima. Domesticada, domada. Meu corpo igualmente acabado, minha pequenez me segurando no pedestal do microfone, tentando sorrir para mentir alguma coisa bonita no meio daquilo tudo. Matheus no seu feudo do palco segura o baixo já sem forças, dá graças a deus por estar sentado no seu banquinho, ele eleva os olhos e pisca lentamente para cada uma das pessoas ali perto do palco. Logo o primeiro de nós levanta e vai para o camarim. Nunca fomos de saudar o público, as coisas simplesmente acabavam, sem uma cerimônia, sem um agradecimento, nem um beijo atirado às pressas de despedida.


“Vivo de lembranças e jantares vazios... Na companhia de coisas mortas... de quem... já partiu...”


Queria culpar a fama. Queria culpar minha ingenuidade e todas as escolhas e reconhecimentos errôneos que nos afetam. Eu namorava a agulha emperrada na veia do meu braço esquerdo e um calendário de 1988 com uma foto de flores. Já não sabia de nada e, pouco a pouco, o espaço e o tempo iam se misturando e formando uma bola mau cheirosa que fica quicando de um lado por outro. Queria nunca ter falado. Sempre que chego no camarim fico desejando ter nascido muda e com os seios maiores, me vejo emplastada no espelho, com a maquiagem borrada e saboreando o desejo bobo de que nunca tivesse experimentado a pior droga de todas, a complacência dos amores que te entendem. Mas, acho que acima de tudo, queria nunca ter me sentido uma deusa. Alguém acima das minhas próprias canções, que se debruçava no piano rebolando a cintura contra a de algum homem estranho, achando aquilo o máximo da poesia, com as narinas e os seios decorados com sobras de cocaína. “Que tesão que me dá quando tu cheira no meu peito...”


“Teu retrato aqui, olhando pra mim e me lembrando de dizer...”


O enjôo virou meu melhor amigo durante algum intervalo comercial da tevê. É uma sensação que se espalha por todo corpo, parece uma fome vazia, aí tua barriga fica girando, e, onde tu encosta no teu corpo dói. E nada pára na porcaria do estômago. Um dia eu me dei conta de que vomitar era mais corriqueiro do que comer, e, brigava com “respirar” pelo topo do pódio das minhas preocupações.


“Faça por mim, o que eu fiz por ti... escolha a vida escolha sorrir.”


Depois do show, depois das coisas de camarim. Cada um fica no seu canto, mudo, guarda seu instrumento e vai desaparecendo como inverno na primavera, parece uma coisa que se sobrepõe. Eu sempre fico, passo horas ali, me recompondo, me alimentando de alguma coisa que não sei bem o que é, como se fosse um útero. Um útero pornô, degenerado, sem regra alguma. A melhor parte do show é se enfiar no próprio útero, pedir para o produtor entupir ele de flores e uísque. Mas, mulheres não bebem da garrafa, não importa o que seja, elas sempre usam um copo.


Não lembro quando passei a misturar o camarim com o palco, enfeitar meu microfone com flores e levar a garrafa para o meu lado. Eu geralmente esqueço cada apresentação da banda, tento enfiar ela em algum lugar da memória com uma cortina na frente, mas as coisas escapam, são como areia fina. Enquanto eu dou uísque para alguém da platéia, da primeira fila, ganho em retorno a eterna impressão de um rosto sem nome, que volta nos sonhos, que volta no sexo, que se estende até o show seguinte.


Até ser trocada por outro estranho, por outra estranha. Pela subseqüente cena de alguém preso entre minhas pernas, achando aquilo o máximo, esperando um eco no meu semblante caído, uma reverberação de uma trepada indiscreta que geralmente não chega a lugar algum. Aí depois eu me culpo por trocar intimidades como se fossem roupas sujas. Até que a culpa perca todo seu sentido.


“Faça por mim, o que eu fiz por ti, escolha a vida escolha sorrir.”


Viveria outra vida se nunca tivesse cantado, se amar fosse algo palpável, se escolher viver me fizesse alguém melhor, uma boa mulher. Talvez fosse bom se “puta”, “vagabunda”, “pra quem tu deu ontem?” fossem só umas brincadeiras na cama, um convite à excitação que só a culpa e a vulgaridade nos levam.

Mas, acima de tudo, fico pensando, até que batam na porta do meu útero-camarim, que vida teria sido a minha, se eu tivesse feito por mim o que eu fiz por ti?