sábado, 23 de janeiro de 2010

Paralelo 30 (beneath the sheets of paper lies my truth)


2010: A noite tem um barulho par. Aliás, que não tem som nenhum, mas que se multiplica como um virus, sem pressa, mas sem parar em nenhum momento. Eu caminho no meio-fio me equilibrando, de braços abertos: chapéu na mão esquerda, cópia surrada do Hamlet na direita. "Pra Dinamarca meus amigos!" Grito enquanto tropeço numa lixeira. Alguém grita algo me chamando de bêbado, me mandando voltar pra casa. Mas eu não bebo. E casa tem só quatro letras, a morada de um poeta precisa de bem mais vogais e consonantes, porcarias vindas de antes... Bom, não tenho tempo pra para e explicar tudo isso. O sinal abre, pendurado nos fios que cruzam a rua. O carro que havia me xingado dança dobrando a esquina. "A noite-tê, te-êm êm, um um, baru-lho-lho, sem par-ar-ar".

1826: Observo alguns fios de cabelo para fora do caixão. Com as mãos um pouco hesitantes coloco-os no lugar, por trás da orelha. A pele amarelada vai tingindo o ar junto com o bruxulear das velas. Minha bata gruda no peito com o suor. Me sinto observada, o padre diz que é a presença de Deus. "Não.". Tem alguém me olhando. Não é a morta: "Ela tá morta". Ela eu sei que tá morta. Minhas sardas me fazem companhia, tento lembrar dos lugares que mais tem, perto dos seios, no pescoço, debaixo dos olhos...

2010: Eu cubro os olhos e conto os dedos dentro do bolso pra saber se todos eles estão lá. A barba coça como um animal sarnento, cheio de pulgas. O hidrante quebrado parece se vingar dos cachorros e jorra água na rua como se estivesse causando uma revolução. Me abaixo e tomo dois goles d'água. Uma senhora dentro da farmácia me observa horrorizada. Mostro a língua pra ela e continuo bebendo água. "Thank you sir, that water was just lovely, it was everything I needed. I bid you farewell." Invento um sotaque britânico e finjo uma gota d'água ser uma lágrima condenada aos cílios.

1826: Alguém aguarda um pedido. Depois da décima quinta ave-maria, faço um acordo com algum santo para me liberar da tarefa, às vezes acho que tenho mais o que fazer. Não, eu só tô de saco cheio de ficar aqui. Me aproximo do caixão. "Me disseram que teu caixão foi feito de conchas amassadas... Tu não parece morta. Mas tu não parece viva também. Sabe? Hoje eu andei de cavalo. Não tem como tu saber, mas eu andei. Nunca tinha andado, acabei ficando com um pouco de medo. Tu tá com medo?"


2010: Passo em branco na marcação que divide a rua, piso apenas no pontilhado. Uma dança, horrorizada com a continuidade intermitente das linhas, em algum lugar amanhece e tudo vira poema. Alguém me observa. Fala alguma coisa no meu ouvido como se eu pudesse escutar. "Move teus lábios, articula alguma coisa!" Vou repetindo baixinho até virar palavra, até virar a noite.

1826: "Santo anjo do Senhor, meu zeloso e guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, me guarde, governe, ilumine, amén". Pronto, só fazer o sinal da cruz. Nunca tinha parado pra pensar nessa oração, é cheia de pedidos... Talvez fosse mais fácil pedir menos coisas, mas coisas mais fáceis... Comida, água. Eu prefiro pão e água do que piedade, bom, eu não devia estar pensando essas coisas, com uma morta do lado, vai que Deus tá aqui ouvindo...