segunda-feira, 12 de abril de 2010

Minhas queridas sinapses, hoje eu...


Era uma maravilhosa seqüência de falhas. Cada uma mais bela que a outra. Na minha cabeça eu despendia horas acreditando que cada som era uma mancha num silêncio passivo que não voltaria mais, embora todos os meus esforços contra isso. Eu corria do piano para a máquina de escrever, da pia da cozinha para o quarto, me masturbava procurando o gemido certo que colocasse as coisas em movimento. Exausta, estatelada entre os travesseiros, assoviei qualquer coisa usando o pular do peito embaixo dos seios como metrônomo. Um compasso Allegro ma non troppo descrente da honestidade do meu suor.


Namorei o revólver enquanto examinava os cilindros vazios. Se tivesse achado as balas poderia ter dado uma chance para o berro escandaloso que a arma produz, mas seria outra tentativa infame de brindar as coisas com um começo. Meu namoro com o revolver durou tão pouco que me presenteou apenas com uma lembrança vaga entre uma trepada com a Marta e uma encenação tediosa do Becket na década de oitenta, num daqueles teatros em que todo mundo acha que a consciência é seu diário favorito.

“Tu acha minhas mãos pouco femininas? Tu quer que eu liste meus vícios? Tu já morou na Bélgica? Tu gosta do Gardel?” Não esperava nenhuma resposta no telefone, a voz áspera do outro lado me entregava de assalto o bufar da respiração incomodada. “Tu quer que eu vá aí?” Sempre me interrompiam, mas eu nunca respondia, era o momento de desligar o telefone e me embriagar com a sensibilidade de outra pessoa. “Tu realmente não acha minhas mãos pouco femininas?” A negativa sempre soava como qualquer outra coisa.


Era uma espécie de intermissão perfeita, os telefonemas e o chá quente diluindo a janta no meio da minha barriga. O papel riscado acabava dobrado e perdido na carteira. E assim o momento ia me calando, num rabisco incerto e um monte de palavrinhas que iam se sujando de resto da janta e minha sorte de pensamentos quase vulgares. O prato usado é a melhor escrivaninha que existe, se não quebrasse toda vez, seria o lugar perfeito para a máquina de escrever. Eu tentava, mas não conseguia escrever “intermissão” e “sentiríamos” com as mesmas letras.


"Tu riu quando eu escrevi um poema no verso de um cheque?" eu mesma respondi, me dando uma pista pra todos os questionamentos que a ansiedade me crivava. "Ri feito besta. Depois chorei feito anjo."

Eu tenho a Physique Du Rôle de um sargento do Exército Vermelho, meu sofá é a comuna onde eu prendo refugiados bêbados da rua, homens e mulheres com gosto entorpe na língua, volta e meia invejando descontentamento com meus tratos pouco finos, mas bastante carinhosos. E não tinha horário para ensaiar isso no meu dia, infelizmente, bastava o improviso sem talento e o entretenimento reciclado das minhas próprias piadas. Mesmo requentadas tinham um belo som.


Finalmente, o lampejo de loucura que só brinda as boas idéias. As crises de ansiedade foram se empilhando como brinde de festa infantil, aqueles com o nome do miúdo e a falsa impressão de que nos lembraríamos de ter estado lá. O piano não tinha o som alegre da piada bem contada como eu insistia em procurar, meu pijama infantil vestindo o contraste da pele também não passava perto. Um murro na parede podia vencer a letargia que as horas impregnam no corpo, especialmente no porta-prazer e no aparelho dentro da cabeça que traduz as coisas. O riso eufórico era uma boa mentira pra começar o mundo. A Bíblia dizia isso em todas as páginas ímpares do Gênesis.


E eu descobri que a euforia era triste, sorri pra mim mesma como se fosse a primeira pessoa a concluir isso, pelo menos sem nenhum aditivo ilícito.


Sentada no sofá, minhas mãos pareceram mais femininas do que nunca, meus lábios tocaram a almofada enquanto o sono ia violentando meu corpo sem muita cerimônia. Riso fácil. Facílimo. Sentar já era apenas para quem esperava algo, não pra mim, aí abençoei quem estava aguardando um ônibus interestadual nos bancos da rodoviária.


Minha mão feminina atira uma das almofadas no piano e faz soar o barulho mais cheio de ternura do mundo. O mesmo som de um homem escorregando numa casca de banana. Do palhaço irrigando o outro por uma flor falsa no meio do picadeiro. O bom som das pálpebras batendo no resto do rosto.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Uns vários pares de “por enquanto”




Aí tu envelhece, te reconhece nas fotos de criança, mas não nas do período em que estava na faculdade. Sorri percebendo que ainda sabe de cor o telefone de uma amiga, a Renê, e segue em procissão pela sala. Ainda com a cabeça longe, se dá conta do copo de cerveja na frente, o toca com as costas da mão e diz que esquentou. Da parede, o calendário do mês de Julho te observa sem o menor interesse. A sala povoada de coisas faz o mesmo.

Quase por acaso tu lembra de quando tinha terminado o colégio e trabalhava numa pequena livraria na Cidade Baixa. Daí tu senta no sofá e te dá conta de que ainda tem o jeans com o bolso manchado por uma caneta que estourou. Esqueceu de dar pra alguém, por apego, por caridade. Sempre tinha uma caneta no bolso, pronta pra escrever o maior monte de coisas que podia imaginar, cada linha era um pequeno gozo. Mais escrevia que vendia livros. Mas era linda. Não, era gostosa, sempre tinha alguém indo lá fingindo ou mesmo comprando alguma coisa só por causa disso. Era bom pros negócios, era bom pra literatura. Do jeito mais hipócrita que tu conseguia adornar.

O dia em que a caneta estourou vai ficando claro. Ia encontrar uns amigos depois do expediente e encher a cara como medida preventiva contra alguma tristeza que a vida pudesse trazer. E como eram boas as risadas, comidinhas e companhias. De repente a tristeza nunca vinha, nunca vinha, entre um desapego e outro tu te sentia segura, vacinada contra o mundo. Se não fosse pela cerveja, seria por algum outro motivo. O importante era adiar a chegada da tristeza com a força de todos os dedos.

Bem disposta tu encara a cerveja quente na mesinha de centro. Pinta ela com um refrescante jeito de maresia, areia nos pés e som de ondas rolando na praia. A brisa da sacada balança o calendário. Ainda Julho. O líquido quente escorre pela garganta e te brinda com uma careta infalível, mesmo assim o gosto é de algo gasto e usado, algo bom pra te distrair de ti mesma.

O dia anoitece sem querer. Tu faz promessas pra ti mesma... Não só na última noite do ano, mas na fila do banco e no café-da-manhã. Parece roleta russa. Enfia uma promessa no tambor do revolver e dispara contra a testa, a bochecha ou mesmo dentro da boca. Puxa o gatilho e espera o inevitável descumprimento do que havia proposto. Day in and Day out.

Na cozinha a cafeteira te espera com a fidelidade habitual, mas, estacionada no sofá, tu não vai. Consegue quase sentir o gosto entre os dentes, a língua queimada no primeiro gole, um bem breve, só pra testar o café. É sempre um exercício ingênuo, tu te agarra na xícara como se aquilo fosse ter um outro gosto, ou se mesmo fumegante estivesse bom pra beber. Tu não cansa, repete tudo toda hora e não cansa.

Do lado do copo já vazio o celular aponta uma mensagem. Alguém convidando pra ver um filme, pra ir pra algum bar, jantar algo, pra ver a noite, pra trepar, pra ficar mentindo a rotina ou pra driblar ela. Mas tu não quer sair. Só de pensar em tomar banho e não colocar um pijama depois te dá vontade de dormir ali mesmo no sofá, ou de gritar alguma obscenidade engraçada. A ameaça de ter que se divertir lá fora te soa como uma gripe, essas que te deixam de cama por uma semana. Ou como um bilhete de loteria que não te dá o prêmio por uma porra de número que tu erra.

E sabe de uma coisa? Tu erra sempre, tu adora errar. Erra com classe, mas te prende no erro como um vício bobo. Tempera mais o acerto, fica dizendo pra ti mesma, com um sorriso idiota no rosto e as mãos atrás entrelaçadas, admirando alguma travessura formal demais pra ter um nome só.

Do cesto de roupas pra lavar tu pega um casaquinho de lã, veste e decide que vai pintar as unhas dos pés pela manhã quando acordar. Também decide ficar na cama um pouco mais, rolando de um lado pro outro, fingindo que ainda tá com sono. Mas só amanhã, só quando acordar.

Se recostando nas almofadas tu decide que quer chorar. Tu nunca é boa em decidir nada, mesmo assim decide também que tá excitada, com sono e provavelmente de TPM. Aí tu lembra que não menstrua mais e que não tem como estar com TPM. Tu tenta pensar em todas as coisas tristes que consegue, mas nenhuma delas te emociona. Não dá nem a oportunidade de ficar com pena de si mesma e pega outra cerveja. Gelada, faz a garganta doer. E com o primeiro gole vem a primeira lágrima, muito mais pelo choque de temperatura do que qualquer outro motivo. Sem jeito, tu quase deixar cair a garrafa.

Na sala, tu não consegue se ajeitar na posição que tava antes, esquece do choro e repousa a garrafa do lado do copo que já estava ali. Espiando pelos ombros tu molha a ponta do dedo e passa por cima da calcinha como se procurasse uma farpa no corpo, sem pressa, sentindo cada parte. Tenta uma, duas vezes, mas logo perde o interesse. Aí tu consegue vencer a própria vontade. O choro vem como se fosse a glória redentora de tudo que há de errado no mundo. E tu acredita nisso com se fosse o segredo da vida.

O barulho do chaveiro batendo na porta joga teu olhar pelo hall. Com algum sucesso tu esconde a cara empapuçada de monotonia. Depois de se encolher limpando o rosto tu ganha um beijo na bochecha, um abraço e o jornal do dia que tinha ficado na portaria do prédio.
“Não desceu hoje?”
“Desci não.” Tu responde fungando, sorrindo e tapando a coxa com o vestido. Aí passa o olhar pelas manchetes do dia sem achar nada de interessante, a não ser uma reportagem sobre as badaladas velharias que vendem nos brechós, todas fazendo sucesso com a camada jovem da cidade.

Sorri pra ti mesma, olha mais uma vez pro jornal e caminha até o calendário, arranca o mês de Julho e faz uma bolinha de papel, vai até a sacada e joga no pátio do prédio. Ganha um novo abraço, dessa vez por trás. Fica observando as quatro mãos na cintura, o seu par e o outro. Ao pé do ouvido ganha uma canção. Sem perceber os dois corpos vão balançando devagar de um lado pro outro. Tu fecha os olhos e diz que ta com um sono minguado, canta junto por um verso e outro sem lembrar do resto da letra. Aí tu canta outra música, se vira chorando e sorrindo perguntando de quem era aquela música. Balança a cabeça como se não fizesse diferença a resposta e limpa a crise de riso-choro com as mãos e as mangas do casaquinho. Do jeito que só tu faz, como se fosse uma criança.