quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A vida dos outros



“Oi, queria te dar boa noite. Acho que já vou estar dormindo quando tu chegar em casa, me liga se tu puder, ainda vou ficar acordada mais um tempo. Beijo. Te amo.”


Os livros jogados no chão dão um tom diferente para o sempre arrumado apartamento de Marcela. O vento balança as chamas de um par de velas acesas por acaso na sala. A luz esverdeada, oriunda da geladeira aberta na cozinha, se junta ao alaranjado das velas. Coçando a nuca, de maneira bastante feminina, Marcela esquece o telefone fora do gancho e fica pensando no marido. Deita no sofá e coloca as pernas pra cima. Fica mordendo a ponta dos dedos e encarando a noite pela janela. Do alto, a lua encara de volta, com um olhar de piedade, seu movimento lento de cruzar o céu é quase como uma sinfonia de lamento, pelo menos é o que Marcela acha.


Na frente de uma orquestra, Michel gesticula e comunica um sermão quase religioso e duro, sem dizer sequer uma só palavra. Uma menina, vestida de verde e empunhando um violino, faz cara de choro, mas, toca as cordas com o arco e morde o lábio de forma sutil e indecisa, observando atentamente as instruções de Michel, seguindo os movimentos dele com seu rosto. Ela dá leves beliscões nas cordas com o arco. Os sons começam a se dar as mãos, então, as notas do violino se juntam com as dos outros instrumentos, e quando a garota começa a esboçar um sorriso e confiar em seus movimentos, o maestro inicia um novo discurso ditatorial silencioso, munido de olhares perversos e tristes.


Agarrando cada fio de um silêncio praticamente palpável, André solta sua flauta e tenta tocar a mão da violinista, mas, ela recua em um movimento rápido e arisco, sem tirar os olhos do maestro mais a frente. Ele não insiste, não sabe se olha para a própria mão, para a flauta ou para o violino. Com uma voz baixa e discreta, ele fala:


“Escuta, Diana, não dá bola pra ele... Tu sabe que estava perfeita.”


Diana, passando uma nova camada de breu no arco, parece não ouvir seu colega e mantém o olhar sob algumas pequenas mechas do cabelo branco de Michel, que, depois de um longo silêncio, dá algumas instruções verbais para os músicos mais à sua frente. Ele faz isso mesclando olhares com ela e com um enorme quadro ao fundo da sala de ensaio. O quadro mostra uma violinista tocando com um homem desfocado ao fundo. Diana sempre evita olhar para aquele quadro, ele a lembra de que, se não fosse por Michel, ela jamais estaria ali. Que tudo dependia de um amor errado. Um amor vermelho, com manchas de nojo e ódio ao longo de si. O ensaio começa mais uma vez, o suor percorre todo corpo de Diana.


Em um bar, Rosa declama um poema sobre amores tórridos, sombrios e ébrios. Sobre casais jovens, corpos bem vestidos e bocas se tocando. Sons ecoantes e metáforas florais sobre tudo isso. Ela fala de mundos em tom sépia e vestígios de uma paixão recheada de soberba e habitante de uma realidade de fábulas adultas. Rosa cora. A boca dela treme e, em uma mesa ao fundo, Catarina se toca por baixo da saia enquanto ouve o sabor preto e branco das palavras de Rosa. O poema termina com uma ode de três linhas sobre um flautista, lânguido, carnal e amante. Esta é a deixa para que caiam algumas lágrimas pelo rosto de Catarina.


Também é a deixa para um novo poema.


No conservatório, o ensaio termina e André perde Diana de vista no meio dos outros músicos. Decide esperar por ela na frente de seu carro, oferecer uma carona, quem sabe, falar sobre algo interessante, ganhar o afeto dela aos poucos, mostrar que ele é bonito e legal. Além de um exímio flautista. Mas não. Ela não aparece – contrariando o palpite dele –, e as pessoas que passam não parecem interessadas em saber onde ela se encontra. Entre esperar mais e ir embora, o coração partido opta pela ida até qualquer outro lugar, distante do Conservatório Musical. Longe de Diana.


André sempre achou uísque um ótimo anestésico, seja lá para o que fosse. O barulho e o frio da noite eram convidativos a isso.


O som do motor faz coro com suas frustrações ordinárias. E bem como a violinista, o local dos ensaios vai ficando para trás conforme o carro desliza pelas ruas. Na primeira sinaleira, André pega um anel no porta-luvas e coloca no dedo anelar da mão direita. Um compromisso com intervalos marcados, guardado com desdém no carro vez que outra. Atrapalha para tocar, ele fica dizendo para si mesmo, tentando se convencer sem sucesso. Ele dá uma rápida risada olhando para o anel e passa a mão no cabelo. Tenta se concentrar no trânsito e em descobrir se está com saudade da namorada.


Na sala de ensaios, uma clarabóia trata de banhar tudo ali com a luz da lua, lá dentro Diana abre os botões de sua blusa, solta o sutiã e arranha a lateral de sua barriga com suas unhas vermelhas e compridas. Ela deita no chão e faz uma cara séria. Michel a puxa para seu colo e beija-lhe o umbigo. Diana tenta beijar o maestro, mas ele vira o rosto e fica esfregando sua barba no pescoço dela, enquanto isso alisa sua coxa com uma de suas mãos. A coragem lhe falha ao se deixar gemer, não consegue acreditar que se sente bem com aquilo. Michel respira fundo e não fecha os olhos em momento algum. Entre a sujeira e o amor, Diana sorri.


No sofá de seu apartamento, ainda deitada, Marcela fica se sentindo velha. Vê as raízes crescidas no cabelo pintado, os seios flácidos caídos no vestido frouxo. Ela levanta e anda de um lado para o outro, não entende por que se sente ansiosa e angustiada. Se fumasse, seria um ótimo momento para fumar. Algo a mantém acordada, é difícil dormir sem Michel do seu lado na cama. Sem ele, o silêncio sempre parece maior e mais desconfortável. Pesado e áspero. Marcela não quer deixar outro recado para ele, mas, seus dedos sempre buscam o número do telefone dele nas teclas do aparelho. Um pingo de razão a faz desligar antes mesmo do primeiro toque.


Catarina rabisca o próprio nome em uma carteira de cigarros aberta e vazia. Desenha corações e notas musicais sem pauta. Escreve pequenas frases em alemão e francês. Esboça um sorriso enquanto faz isso. No palco, Rosa termina mais um poema e se excita com cada aplauso das pessoas ali presentes. Ela brilha em seu vestido prateado e se embebeda do amor nos olhos das pessoas que ela provoca, com seus poemas, com sua voz doce. Com seus olhares carinhosos. Na mesa do fundo, Catarina fala o nome de Rosa baixinho, sentindo um enorme ciúme das pessoas olhando ela. Em uma breve ilusão, Catarina vê Rosa chamar pelo seu nome, lhe faz lembrar de como chama seu gato de estimação perto das lixeiras, no meio da noite.


O frio aumenta. Michel tenta vestir a roupa enquanto Diana se abraça em sua perna. O chão gelado tem o cheiro deles e algumas partituras amassadas. Bastante pó e roupas amassadas. Ele beija os lábios dela e diz que tem de ir embora e que ela tem uma vida além daquilo ali, mesmo que ela não acredite.


“Preciso ir, e não, não me olha como se eu fosse me sentir culpado por você ou por minha mulher. Muito menos pelo que digo ou faço.” Diz ele, seco, sem olhar ela.


Enquanto os carros andam, André mergulha dentro da própria paranóia, leve e despreocupada. Não quer ir até o bar onde está sua namorada, mas, nenhum outro lhe apetece. Algo lhe diz que não é um bom momento para ver Rosa. Não tem coragem de contar que ama outra pessoa, mas, também não tem coragem de se entregar a ela de uma maneira completa, fica dividido e constrangido. Sabe que é um sentimento que não tem volta e que vai tornando ele cada vez mais vazio. De um lado, um amor não correspondido, de outro, um amor não aproveitado. No dedo, o anel “aliança” de André gira impaciente a cada parada do trânsito.


Catarina vai até o banheiro, para lavar as manchas de tinta da caneta dos braços, aproveita para jogar água na cara e, quando tira as mãos do rosto, percebe que Rosa está olhando ela de perto da porta. Como se fosse uma foto, ela fica paralisada. Rosa sorri, passeia ao redor da menina na pia como faria uma gata aristocrata, cheia de pompa. Passa as mãos nos cabelos e na franja molhada de Catarina e se apóia na parede enquanto leva a mão ao isqueiro. A outra logo fala.


“Eu amei teus poemas... Eu. Eu acho que... Eles são bons sabe? Claro que tu sabe...”


Rosa dá uma leve risada e guarda o isqueiro, fica olhando todas as partes do corpo da linda menina encabulada ali com ela. Arruma a franja atrás da orelha e os óculos no topo do nariz. Ela desliza as mãos pelos braços e dá alguns passos bastante lentos. Chega próximo ao ouvido de Catarina e fala enquanto toca a orelha dela com o lábio, quase sem querer.


“Esse teu jeito tímido. Essa tua voz parecendo um miado. Gatos, aposto que tu tem gato em casa, não parece alguém que gosta de cachorros. Que linda essa tua franja de menininha. Cuidado, bonitinha, tem muita gente mal intencionada por aqui. Se eu fosse tu, ficava com os olhos bem abertos...”


Rosa dá um beijo na bochecha de Catarina e sai triunfante do banheiro. A porta se fecha e a “bonitinha” fica parada, sem saber o que pensar, sentir ou fazer. Do outro lado da porta, Rosa atende uma ligação de André.


As fortes dores de cabeça perturbam Marcela. Ela fecha a porta atrás de si e desce degrau por degrau a escada, decidida a ir até a farmácia comprar umas aspirinas. Ela não gosta de tomar remédios, por isso nunca os tem em casa. Michel tem os dele, sempre toma alguns comprimidos antes de dormir, depois de acordar, antes de comer, depois de sair para o trabalho. Marcela não conhece nenhum deles, o marido não conta para o que servem. Austero como só ele sabe ser, vive fazendo caras de poucos amigos quando sua mulher toca no assunto.


A farmácia é perto, quase na esquina, o movimento da rua é pouco, por causa da hora já tardia. Marcela entra e fica procurando a gôndola dos analgésicos, ela não é familiar com a disposição das coisas ali, raramente tem de ir até a farmácia, mas, tenta se divertir com isso. Ela fica um pouco vermelha ao ver uma menina comprando alguns pacotes de camisinha, do fundo ouve uma voz masculina.


“Anda, Rosa, to estacionado em fila dupla...”


Rosa sorri para Marcela e lhe atira um beijinho enquanto pisca com o olho esquerdo, faz isso desviando de algumas pilhas de produtos e olhando por cima do ombro.

André a espera na porta e lhe dá um beijo bastante carinhoso. Ele olha para Marcela e tem a impressão de já ter visto ela em algum lugar, mas, não dá muita bola para isso, já está ocupado demais em tirar Diana de sua cabeça enquanto Rosa se acolhe em seus braços.


Michel termina de fumar um cigarro dentro do carro, na frente de seu prédio. Sabe que Marcela odeia o cheiro da fumaça e da nicotina, mas, melhor isso do que o perfume adocicado de Diana. Certamente Marcela ia estranhar aquele cheiro doce, levemente cítrico, mas, essencialmente feminino. Ele teria de dar alguma explicação furada, apesar de ser um marido infiel, Michel odeia mentiras. Odeia ter de mentir. O cigarro não precisaria de mentira alguma. Tinha algo de verdadeiro na desculpa que ele preparava. “Estava deprimido, resolvi fumar um cigarro. Achei que ia ajudar, mas, estava enganado, ultimamente tenho estado enganado sobre muitas coisas.” Ele ia ser evasivo e dizer que tem achado ela fria e distante. Ninguém ia chegar a lugar algum. Iriam dar um beijo rápido, e então, dentro da cabeça deles, iriam acreditar que tudo está bem.


O vento gela mais a noite. Um ônibus dobra a esquina, Diana sobe e ignora o olhar malicioso do cobrador. Ela detesta pegar o último ônibus da noite, detesta deixar a mãe dela preocupada esperando, sem saber se a filha está bem. Ela fica pensando que a mãe teria um infarto se soubesse que o motivo dos atrasos é um affair com um homem mais velho e casado. O ônibus está vazio e ela resolve sentar no fundo, na parte mais alta, mais escondida. Diana cola o rosto na janela e fica admirando as luzes, sentindo o cheiro forte de Michel ainda no seu corpo e na sua roupa. Ela manda uma mensagem para ele pelo celular. “Te amo”, diz a mensagem. Algum tempo depois, ela recebe uma resposta. “Algumas vezes por semana eu também te amo. Mas nada faz esquecer que eu amo minha mulher também.” Diana canta uma canção, enquanto embaça o vidro com sua respiração curta.


O quarto de André é bastante escuro, os letreiros eletrônicos da cidade iluminam tristemente a cama e algumas roupas jogadas por ali. Rosa veste sua calcinha e beija o peito de André, lhe deseja boa noite e se espalha na cama junto dele. O barulho da televisão do vizinho incomoda.


André fica pensando em Diana, na sua pele fria e pálida. Ele fica formando as letras do nome dela com sua boca, sem emitir nenhum som. De alguma forma, gostaria que ela estivesse ali no lugar de Rosa. André se levanta, rabisca algo na parede com batom e volta para cama. Levanta, apaga o que escreveu e abraça Rosa.

No vizinho, a televisão continua soando alto, algum canal pago de esportes, é comum as pessoas deixarem o aparelho de tevê ligado para espantar qualquer sinal de solidão. Ou mesmo ladrões afortunados.


Catarina é a última a sair do bar. O dono tem de avisar ela de que não há mais nada ali, que até a cerveja acabara cerca de meia hora atrás. Com um sorriso simpático, ela diz que não tem para onde ir, o dono do bar, um senhor careca, gordo e de bigode, sorri e dá as costas enquanto acena com uma das mãos. A garota sai, dá passos bêbados e senta no chão de uma esquina, fica cantarolando uma canção de amor antiga e ingênua. Ela tenta permanecer acordada, alguns homens passam do outro lado da rua, mas, não a notam. Catarina não se importa com isso, fica pensando que teve uma boa noite, alisa a bochecha que Rosa beijou, de uma maneira muito tenra, com as costas da mão. Ela fecha os olhos escorrega até o chão.


Michel se surpreende ao encontrar o apartamento vazio. Fica sentado na cama olhando pela janela. Coça a barba vez que outra e boceja algumas vezes. Estranhamente o sono vai embora. Mesmo cansado, dormir parece uma tarefa complicada. Marcela sobe as escadas, fica mastigando um par de comprimidos e coloca a chave na porta. Entra, bebe água na cozinha e joga a bolsa no sofá. Ela sorri ao ver Michel acordado na cama e se deita do lado dele. Beija as mãos do marido e diz que o ama. Michel vira para o lado e dá boa noite. Marcela sorri e abraça seu marido.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Descuidos (Repost)


Ela vestia uma saia xadrez de algodão. Era linda, verde-escura, com umas linhas vermelhas e de um roxo bem leve. O corpo estava um pouco descoberto, o sutiã e o sobretudo pretos contrastavam bem com a pele braca e tímida. Talvez fosse dona de uma nudez intimidadora, mas isso ainda não era um problema. O olhar sim, curioso e vivo, pousava como uma questão sem grande resposta. Não era algo que chegava a me incomodar, mas ela perdeu um longo tempo me olhando. Foi se estatelando devagar no sofá e lá ficou. Me impressionava o fato de ela não parecer exigir uma retribuição, era um olhar ofertado, gratuito no sentido mais bonito da palavra. Por um instante quase deixei meu copo de uísque escapar da ponta dos dedos balançando perto da coxa. Seria um pequeno desastre, mas, foi prontamente evitado. Num movimento quase involuntário, levei o copo até os lábios, não com a intenção de tomar, mas, simplesmente de queimar um pouco a boca para me manter acordado, calado também, talvez. Ela me arremessou um sorriso junto com o olhar. "Bom trabalho, campeão." Se inscrevia entre os cílios.

Do outro lado da sala, Daniel, absorto nos seus cigarros, colocou um disco no prato, Ely abriu os olhos por um longo momento e acompanhou o movimento do braço até o disco de vinyl, então tornou a fechar os olhos. A menina de saia pendeu a cabeça por sobre o apoio do sofá. Tinha um pescoço magnífico, mas, magnífico, era a pior palavra para descrevê-lo, foi algo que me tomou de assalto, era pictórico demais, aquele pescoço caído, se expondo como se estivesse querendo dizer algo de relevante pro mundo, bobagem minha. Enquanto vencia a batalha contra o sono, senti um peso crescendo no peito, algo que não era novo, mas tinha um gosto de lembrança, algo semelhante ao carvalho do uísque. Meu coração não batia mais rápido, nem em um compasso quebrado, simplesmente se fazia perceptível, quase palpável por entre a minha camisa e os pelos do peito. Tentei buscar nos olhos dos outros algum coro com o que eu sentia, em vão, embora uma tentativa honesta.

Por outro lado, era terrível da minha parte me intrometer no transe deles. Era como se cada um ali na sala esperasse por alguma coisa. Daniel esperava atento, ignorando seu cigarro, os trompetes de Alex Chion, que começavam tímidos e iam crescendo até se transformarem em frenéticos e espontâneos golpes no instrumento. Ely certamente preferia o silêncio, ou alguma forma interessante vista pela janela, algo que ele pudesse transferir para algum poema irritante e comovente. Ana esperava sua libido lhe dominar, algo que sempre aguardava, mas nunca acontecia, preferia esconder-se atrás da franja e da leve carícia por sobre os seios, que, por sinal, quase ninguém percebia. O mais intrigante era a menina da saia de algodão. Ela era uma peça fora do lugar ali. Eu não fazia idéia do que ela estava esperando, mas tinha certeza que aguardava por algo, afinal, estava ali no meio de nós. Eu freqüentava a casa do Dani há uns seis anos, mas nunca tivera visto ela ali antes.

Ela Conversava com as pessoas quase que de forma aleatória, oferecia um “que” de bossa nova como pagamento pela atenção dada. Contudo, ali era o seu silêncio que mais chamava minha atenção. Entre os trompetes exaustos, um ritmo quebrado e lerdo amansando no piano, tudo arranhado pelo disco, nos demos conta de que os assuntos tinham partido, já estávamos quietos num gesto em coro com a música. Ninguém se mexia, apenas o ar passava por nós, e, enquanto aquele encanto se aninhava ali, cada um pareceu acreditar que éramos apenas uma fantasia coletiva das consciências por ali, uma brincadeira da imaginação. Algo que beirava um passeio lúdico pela memória, de certa forma dolorido e inevitável.

Se alguém estranho a nós entrasse lá, poderia acreditar que não passávamos de uma instalação de arte contemporânea, uma dessas de difícil leitura, mas muitos significados. Cada uma daquelas paredes podia se mover a qualquer momento, até o tilitar da chuva que começava, de alguma forma, ameaçava quebrar aquela inércia saborosa que nos compunha ali. Podíamos sentir uma espécie de aroma de destino no ar, cada um aguardava a sentença do próximo movimento sem muita curiosidade. Um bando de resignados. Imersos, imersos e inundados na recordação do presente, na tragédia que é regredir ao agora. Um presente contaminado pela despedaçamento de cada um. Não eram mais cinco pessoas, éramos os pedaços de cada um invadindo o espaço um do outro. Até que o disco de jazz pulou para o próximo vinco, que nos levou pra próxima faixa, acentuada pelo raio que cruzava a janela sem ser aparentemente convidado. O silêncio arranhado pela agulha do disco fez reverência e se retirou.

“Aonde vais?... Aonde vais?” Nos resgatou Ely, contemplando a própria mão e um terço do meu rosto por entre os dedos, inferindo que minha troca de peso de uma perna pra outra, meu leve movimento de quadril, queria dizer muito mais do que eu imaginava. Estava cansado, podia imaginar a vida continuando num ritmo de domingo, do lado de fora, embora a noite já estivesse entregue a nós, pouco ainda sobrava pra mim, como se só um número limitado de palavras pudessem ser ditas por dia. Desconcertado, admirando cada um voltando de seu vôo solo, disse que todo aquele tempo parecia ter nos tomado apenas um par de segundos. “Um par sem par.” Sorri um bocado constrangido. A frase era pipocou boba na minha cabeça e escapou por entre os dentes.

A menina da saia verde me encarou, voltando o pescoço caído num movimento brusco. Sorriu com uma cara de travessura infantil, sugeriu com algumas batidas de mão no sofá que eu sentasse ao seu lado. Enquanto caminhava, Daniel me atirou um cigarro e ofereceu o fogo. Ana se deitou no sofá com a cabeça no colo da menina de saia verde, bem entre as coxas e a saia. Meu lugar havia sido tomado de forma tão doce e adorável, que nada podia fazer. Terminei de acender o cigarro e levei o copo de uísque, agora já quase água pura, até a boca, desta vez obstinado e destemido, pronto para acabar com aquela água suja que tinha se tornado a minha bebida. Me assustei de princípio com o gosto fraco e morto, mas, tão cedo aquele líquido amadeirado tocou minha língua, me dei conta de que já estava um pouco bêbado há horas. Tentei disfarçar com o olhar de que, aquilo ali, se tratava da melhor bebida do mundo, tentando despertar o desejo dos outros. Mas não era uma bebida interessante, de forma alguma. Parecia café em copo de suco mal lavado.

“Eu...”

Então, Ely se moveu pro lado, me oferecendo um lugar no chão, junto ao sofá, entre a cabeça de Ana e as coxas da menina de saia. Terminei de me sentar num movimento longuíssimo. “Parecia uma nave alienígena aterrissando!” Comentou com uma estranha euforia, Daniel, para logo depois voltar a olhar para o disco no prato, girando, girando e para a chuva fina entrando pela janela. As risadas dos outros pareciam ter um reverb ilógico, e, antes que eu pudesse formular qualquer tipo de frase, um sorriso me arrebatou e me deteve num longo farfalhar de dedos pelo meu cabelo. Parecia ter uma lona de circo ao redor da sala, aquele quase picadeiro era o lugar perfeito pra perder qualquer sentido de vista. Eram apenas os dedos dela correndo pelo me cabelo, sem pressa, sem atraso.
Nenhum de nós cinco precisava partir, ou tinha uma rotina para dar bom dia quando a manhã surgisse. A grande expectativa era pelo futuro do próximo disco a deitar no prato, nada muito mais longe ou formal do que isso. Talvez fosse mesquinho de nossa parte, ou mesmo imaturo não nos preocuparmos com a fome, a morte e a peste fugindo das páginas de algum livro velho, batendo na porta das pessoas. Não parecia ser a nossa história, não nos pertencia. Não nos interessava. Só o presente nos dizia alguma coisa. Todos éramos lindos dentro dos nossos pequenos espelhos repartidos, e o ar quente da nicotina era a refeição rápida que parecia mais apetitosa. Assim, e quase todos os dias.

“... é como se a gente pudesse masturbar o silêncio um do outro.” Ely falou e levantou as mãos até se cruzarem atrás do pescoço, na mais digna pose de alguém esperando alguma sorte de prazer oral, mesmo que fosse apenas a validação do que ele havia dito, qualquer bando de palavras travestidas de um sentido ligeiramente fora do comum, o suficiente pra impressionar um bando de pessoas não impressionadas pela vida. E, de um modo geral, sempre conseguia.

Sem contar nós quatro, Dani, Ely, Ana e eu, que invariavelmente estávamos lá, outras pessoas iam aparecendo, nunca éramos muitos, mas éramos absolutamente substituíveis, em uma turma de quinze pessoas, no máximo, revezávamos a função de cada um em cada encontro. Às vezes eu era poeta. Às vezes eu tinha dinheiro e bebida. Em outras levava discos. Quase sempre aparecia só com a vontade de compartilhar algo que não sabia, e um tesão do caralho. Era sempre assim. Lugar nenhum era nossa Mecca, então, qualquer lugar poderia ser. Foi algo que me ocorreu, ali, ganhando um afago de uma garota que não sabia, ou não me recordava o nome. Não sobrava lugar para uma prece elaborada, ou para um cuidado transcendental com algo que não podíamos ver, estávamos todos ocupados demais, era preciso celebrar uma mediocridade infantil e divertida que enfiávamos goela abaixo sem muito jeito.

E, claro, nos entregar ao tédio para poder reclamar dele.

"Eu queria mostrar um disco ou um livro se um guarda de trânsito me pedisse a carteira de motorista... Seria tão lindo. Daí ele diria, ok, sei quem você, ficha limpa, mas fica longe dos mais vendidos da semana e do top 25 da billboard, hein? Daí eu arrancaria e em vinte minutos chegaria em Tramandaí, saindo de Belém Velho!" Claro que a idéia era maravilhosa, nos excitava deixar nosso gosto trabalhar pela nossa identidade, mascarar nossas marcas de vacina, chupões e sardas com tudo aquilo que a gente gastava e decorava da escrivaninha até a pele numa tatuagem cheia de uma mística inventada na hora. A menina da saia xadrez retrucou, por coinscidência, na mesma idéia que me batia. "Queria ser um disco do Chico." Falou se aproximando do rosto de Ana, sentindo a respiração constrangida e atiçada com a ponta do nariz.

“Tu gosta de bossa nova?” a voz saiu brincando, era mais flerte que interesse. Ajeitou a saia xadrez e deixou o rosto ficar não mais distante do que um dedo dos lábios de Ana. Entre uma ponta de inveja e a certeza de ela poderia deixar qualquer um de nós ali em farrapos de dignidade suada e gozada, me aventurei, ainda amargando o gosto da água suja que eu tinha que apelidar de uísque.

“Eu amo bossa nova...” Entreguei mordendo os lábios e soprando a fumaça do cigarro devagar. Mentindo a maior calma que eu conseguia.

Aí, faltou luz.

Ana gemeu como se alguma divindade tivesse ouvido sua prece, pude ouvir o estalido da saliva migrando de uma boca pra outra. Também pude ouvir Ely recitando um poema lindo do Léo Ferrér, algo que muito calhava ali, naquele momento, substituindo com perfeição as notas soltas do jazz que ouvíamos. Logo as luzes dos cigarros apareceram, imitavam vaga-lumes e pontilharam a noite feia e escurecida. Minha garganta parecia apertada, como se dela viesse o sentido de tudo aquilo. Claro que não vinha. Daniel abriu a garrafa de vinho que estava ali por perto e logo foi passando. Ninguém ousou derrubar nem uma gota, não era o sangue divino, e, francamente, com tudo que eu havia bebido já de uísque, não passava de algo viscoso e adstringente, mas que me era vendido especial.

No breu dos cigarros e das luzes de emergência do prédio do lado, consegui ver o Ely escrevendo algo na coxa e nas pernas de Ana com uma caneta esferográfica normal, seu rosto ingênuo e irreverente, rindo, balançando com cada palavra que manchava ali. De alguma forma aquilo apelava pro meu lado mais sensível, me excitava provocando uma resposta débil entre as pernas, amassada entre a cueca e o jeans. No meu mundo hipotético, tudo aquilo era registrado em uma película esmaecida de uma câmera barulhenta. Imagens amadoras que poderiam dar vida a qualquer projetor de filmes empoeirado num canto da casa. Para mim, aquela metáfora fuleira era quase transcendental, o ápice da minha genialidade enquanto ainda vestido. Quando nu, talvez me acanhasse num preto e branco vazado de fácil revelação e rápido esquecimento. Ou vice-versa.

A menina de saia desceu do sofá e sentou-se atrás de mim, pude sentir os seios dela nas minhas costas pela camisa. Um calafrio bobo me fez olhar pra trás para verificar se era ela mesma, claro que era. Não sei o que ela sussurrou no meu ouvido, mas, em seguida tomou um gole da garrafa de vinho e encostou os lábios nos meus. Metade daquele líquido bordô escorreu pelo meu peito e meu pescoço, outra parte caiu na minha garganta, já torpe e brincalhona. Alguém puxou uma canção ‘en route’, e cantou arrastando todos os versos sem querer dizer nada, mas, se impregnando do sentido da música. Talvez fosse Daniel, que ansioso esperava pelo retorno da garrafa de vinho, vagava no seu trotoir de baixo calão e na sua faceirice de comungar nossas vidas com ele. Ao mesmo tempo em que tudo aquilo me encantava, ainda me sentia cansado sem ter feito nada. Aos poucos ia deixando o corpo cair no dela, ali, atrás de mim, limpando os lábios com as costas da mão, insinuando que estava pronta para qualquer outra coisa, sempre pronta. Fui fechando os olhos, e, enquanto as mãos dela passeavam pelas bordas da minha camisa, me deixei tomar pelas sirenes que ululavam dentro de mim, o último retorno já figurava no meu retrovisor. Já era tarde demais para qualquer coisa. Lembro de os lábios dela serem fofos, como apertar algodão para tirar um pedaço do grande chumaço.

Até que a luz voltasse, e cada um pudesse assistir à solidão um do outro, tinha ali um mistério sem nome para resolver. Embora tudo girasse, algo que só o corpo bêbado e o gira-gira das crianças conseguisse reproduzir, havia uma leveza no ar, um sentimento parado, observando a gente ali, misturado com um perfume um bocado desconhecido que me acalmava, camomila talvez. Ela já não estava mais atrás de mim e a garrafa de vinho, quase vazia, fazia companhia pra minha ereção entre as pernas. Até que a luz voltasse, podíamos pintar com fantasia os crimes dos nossos desejos, e imagens aleatórias nos guiariam por entre aqueles cinco corpos sorrindo um pro outro sem se perceber.

(Originalmente um texto de 2009 repostado por gosto do autor)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Carnaval de Outubro - Cafeína, Dopamina e essa menina.


Tua camiseta diz: Se o leite acabou, aperta a vaca. Daí eu me dou conta da conversa em andamento, mesmo sabendo que tu não te importa que eu só aparente estar ouvindo.

É como rasgar um guardanapo, tu me diz. Será que é mesmo? Eu fico me perguntando como se já não soubesse a melhor das respostas pra essa pergunta. Num movimento rápido eu me levanto por sobre a mesa, empunho o dedo e. E nada. Tu me olha e eu não sei se perco meu tempo falando ou simplesmente mastigo a coragem goela'baixo.

“É como rasgar um guardanapo, quando tu menos vê ele rasga.”

“Quantas vezes tu já me disse isso?”

“Sei lá.” Esse teu olhar, essa tua resposta como se eu fosse o campeão das perguntas erradas, ou as perguntas certas na hora em que não se precisa falar nada. Tu ignora a natureza violenta do meu medo, da minha ansiedade transformada em batucada de carnaval na borda da xícara estatelada na minha frente. “Samba comigo, morena.” Fico pensando. Samba comigo no frio de agosto com um dígito só de temperatura. Não ri quando eu olho pros teus peitos e me explica que porra de história do guardanapo é essa.


Não. Ainda não. Falta um pouco ainda pra deixar essas coisas fazerem parte do velório do que um dia poderia ter sido a coisa mais bonita do mundo. Ainda bem que essas tragédias ficam sumidas. Minha maior façanha – do dia em que nos conhecemos até hoje – é a minha capacidade de nos julgar merecedores disso ou daquilo. De nos privar de um uma manada de bobagens que um dia nos aproximaram e foram virando osso roído. Meu olhar te diz, deixa pra mim, eu sei o que estou fazendo e pra onde estamos indo. Por dentro eu não contenho o sorriso, se tu não tivesse chorado a noite inteira, teria uma enorme certeza de que estamos indo pelo caminho certo.


Essas paixões não passam de uma febre que vem e que passa. Paixão de riso e de choro. Não é regalia de um estado de espírito ou de outro. É isso, é febre, é doença. No meio desses pedaços de pele relando um no outro, um certo outubro se arrasta por entre uma camisinha usada e um box pequeno demais pra acomodar duas pessoas querendo se livrar de um suor amigo. Tua maior façanha fica entre os dedos e essa doença, esses calafrios de boa noite. No fim do dia tudo vira uma maldita dança inventada, uma coisa de gozo e champanhe barato, um glamour de consultório de revista que não nos leva a lugar algum. “Vem, morena, vem sambar na minha burguesia de aluguel.”.


Tu me inspira um samba enredo sem fãs e sem coro. Pra esse samba não tem nem como matar o gato e pegar o couro pra fazer o tamborim. Inspira. Expira, comigo, sem perceber e já batendo nos bolsos e na saia procurando por um cigarro. Tudo que tu tem é essa doença, esse amor meio vulgar meio novela das oito. Essa febre, tuas bochechas vermelhas e esse calor estranho são uma grande bobagem sem propósito, mas tuas coxas tão lindas hoje, fico pensando, já absolutamente entregue, sem pensar no que fica escondendo nas sapatilhas ou entre os lábios.


Eu te encaro e limpo as mãos com o guardanapo de pano, não com o de papel. É quase sempre o teu sorriso que rompe a minha carranca. E é sempre tu que quebra o silêncio. Sempre foram tuas essas coisas de fada.


“Eu te amo.”

“Eu também te amo.”

Nenhum dos dois quis dizer aquilo. Nossas cabeças bêbadas vão traduzindo aquelas frases conforme os sinais vão aparecendo. Teu esmalte vermelho'paco. Tua chuva presa nos cílios e teu talento pra inflamar o meu flerte discreto com a garçonete lá no canto. Tu ri da minha cara e ainda pergunta, E eu acredito que tu não sabe nada de nada de ninguém. Fico achando que em silêncio até poderia quem sabe me apaixonar por ti, mas tu não gosta de silêncio e quebra ele como poucas.

“Tu vai querer mais um café?”

“Vou.”

“Isso não vai te fazer bem.”

Irritado, limpo os lábios no guardanapo sujo, meneio um sorriso e deixo tua mão encontrar a minha, sem proposito, sem jeito nem direção.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sondagens na lista de sacanagens telefônicas

As dúvidas vão surgindo uma por uma, flertam com o descaso e se aninham nos fins de dia sem grandes novidades. Não me sinto adolescente o suficiente pra atribuir tudo aquilo a um sorriso alheio ou qualquer uma dessas bobagens que não me pertencem. Nem isso, nem a uma garrafa de uísque caída num roteiro de um curta metragem. Mas, mesmo assim, me entrego com uma bandeira de derrota nas mãos e com o mais amarelado “até logo” que consigo pensar. Aí eu pego meu ônibus e deito a cabeça no vidro como se fosse o melhor travesseiro do mundo! Imagino meu ortopedista olhando pro raio-x e dizendo: “É só torcicolo.” Fala porque não é nele, nunca é neles aliás, as falas são tão insípidas quanto o consultório, o jaleco é o que me conquista na familiaridade.

Mas o ônibus não me mostra nada insípido, pelo contrário, me esquivo das pessoas como se não fosse uma delas e como se cada uma pudesse me passar todas as doenças do mundo. Mesmo assim, não consigo não olhar pra cada uma delas de alto a baixo medindo a grana, tesão e capacidade de ouvir um disco do Neil Young do início ao fim. Tudo isso pra fugir das dúvidas e sorrisos, dessas indecências que vão me rasgando por dentro aos poucos como se fossem cólica, como se jorrassem tpm por cada esquina que o trajeto me faz dobrar. Coço minha barba e esqueço do meu útero hipotético. Mas não das indecências.

Em casa eu deito pelo quarto, meio sem roupa, meio magro demais. Batuco na janela qualquer bobagem meio bossa nova só pra ver no que dá. Nunca dá em nada, me falta a pele negra ou a vivência da beira da praia, o Rio de Janeiro continua lindo e eu continuo longe dele, a areia mais próxima é a caixa do gato, e o mar, bom, me serve o início do mês do calendário, 2 de Março, ainda é quente, a meteorologia diz que vai ser o fim de verão mais preguiçoso do mundo, vai ser julho e vai estar todo mundo moreno ainda, sem casacos, sem frio da serra, sem chocolate quente. Ao menos, sem roupa. Mas a Baía da Guanabara e a bossa nova não servem de nada pra me alentar naquilo que sobra da minha ansiedade, na verdade, elas combinam bem com todo o pano de fundo bagaceiro e pequeno-burguês-apaixonado que eu fico inventando e fugindo como num episódio do Tom e Jerry.

Minha salvação é a lista telefônica, o mais insosso dos prazeres literários. Mapas, nomes e números e tu no meio deles todos, é quase uma orgia visual, teu nome ensanduichado por inúmeros outros, e bairros, e ruas e códigos postais. Talvez seja bem o teu tipo, embora não pareça. Tu não faz gênero, mas – aí, talvez seja coisa apenas dos meus sonhos travestidos de fantasia – tem charme de animal acoado quando te apoia na minha mão, ou mesmo nas minhas costas. Eu rasgo as páginas da lista telefônica com os dentes, aos pares, aos montes e faço duas grande bolas tentando imitar teus seios, sem o primoroso sucesso que o péssimo escultor que sou me convém. Tu me arde, assim como deve incomodar aquilo que se perde entre uma lente, uma vírgula, uma dança e uma terra que é nunca e é sempre, e é logo ali, em algum lugar da porra da lista telefônica.

No fundo, bem no fundo mesmo, acho que prefiro ficar paquerando essa raiva. Esse jeito áspero de batucar no marco da janela enquanto a agulha arranha os sulcos do João Donato na minha vitrola. Eu fico te imaginando com as bochechas entre meus dedos e a esperança de que o decote entre teus seios não tenha fim. E eu tenho quase certeza que tu nunca condenou tua boca a um virilha gozada ainda pulsando, procurando por um resto de pele que não te pertence, mas fica costurado em ti, tu jura que te serve muito bem, combina com tua meia-calça branca fininha, meio rasgada, um pouco noiva demais pro pouco prazer que tu sente normalmente. Eu vivo colecionando essas certezas nos teus óculos escuros e nos espaços que tu vai deixando quando tu anda, te chamo de puta enquanto mijo e sorrio com educação quando tu passa.

Eu sei. Muito. Bem. Disso tu não precisa, dessas coisas, desses exageros e dessa perversão decadente que vem com o início da vida adulta. Às vezes tu me olha como se eu fosse um mapa, e eu aqui, arranhando meus dedos pela lista telefônica como se fossem tuas costas, coxas e afins. Ainda bem que é só assim, esse estorvo inovador que bate feito tambor de terrero, ecoa na noite e fica por aí, pra ser fisgado, pra virar poema de ônibus e frase sacana de porta de banheiro. No fim do dia nem palavras, nem frases, nem punheta. Nada, esse é o grande elo entre teu sorriso besta, tua graça encantadora e a mancha de porra na minha cueca. Ainda bem que o verão já vai acabando. Ainda bem que é março.