domingo, 28 de março de 2010

Cinco Reais


Não consigo pegar no sono. Não é a claridade do quarto o que me incomoda, nem o cheiro de vômito, cigarro e sexo que impregna os lençóis e as paredes, muito antes pelo contrário, esse quarto me pinta uma familiaridade com algo meu que só devo ter sentido antes dentro do útero. Michele dorme de calcinha e pijama, ronca como se não fizesse diferença se é ouvida ou não. Às vezes me abraça como se eu fizesse parte de qualquer porcaria que está sonhando.

“É tarde demais pra pegar no sono”, meio-penso-meio-digo. E é frio demais pra estar sem camisa, sempre me esqueço de como as primeiras horas da manhã são as mais frias.


Apesar dos olhos pesados e o corpo relativamente descansado, me dou por vencido, levanto tropeçando nas minhas roupas, as junto e cambaleio até o banheiro ainda um pouco bêbado, aliás, este é sempre um sinal do excesso de aproveitamento da noite anterior. Palmas.


No corredor a colega de quarto da Michele me olha, sorri enquanto coloca um brinco e recolhe os lábios, vira um pouco a cabeça e fica se contendo pra não fazer algum comentário sacana, mas ela não se dá conta de que esse é o comentário mais sacana que ela pode fazer. Envergonhado, de cueca e camisa de botões pergunto se posso tomar um banho rápido.

“Tem que ir direto pro trabalho?” Ela pergunta realmente interessada.

“Não, eu só...” Uma pausa para um arroto reprimido. “Eu só quero... sabe?”

Ela continua sorrindo, agora um sorriso besta, de capa de revista, toda politicamente correta, olha pras minhas pernas e mexe no cabelo balançando os brincos, argolas enormes. “Sei, sei. Vocês hein?”

“Nós?” A melhor resposta pra obviedade é uma estupidez mais óbvia ainda.

Ela sai rindo, beija a mão e me abana como se fosse apresentadora de programa infantil, um desses de emissora quase falida, o tipo de apresentadora que salva a masturbação dos adolescentes.

Deixo as roupas no banheiro, volto até o quarto e pego um cigarro na bolsa da Michele. Tento não acordar ela e fecho a porta com calma, sento no vaso e fumo o cigarro inteiro enquanto espero a água esquentar. Jogo o cigarro e puxo a descarga. Uma ereção teimosa incomoda a harmonia do banho, uma música antiga vem pela janelinha de dentro do Box, nem uma coisa nem outra me agrada. Ignoro a ereção, canto um trecho da porcaria da música até sacudir a cabeça pra tirar o xampu do cabelo.


Na sala, já de roupas, ponho a mão na maçaneta da porta, certamente o porteiro não vai ter objeção em abrir pra mim, nem vai me julgar por estar saindo àquela hora. Não. Volto pro quarto e sento na cama, a Michele ainda dorme ruidosamente. Passo a mão na bunda dela só por curiosidade. E porque posso. E porque ela não tá vendo. Tenho doze anos de novo.


Na estante de livros, fico olhando o caráter literário dela, péssimo, por sinal. Com alguma pressa, quase como se tivesse fazendo uma sutura num campo de batalha, arrumo duas fileiras de livros por ordem de autor e data de publicação original, mais aliviado, vou até a janela e fico olhando o movimento da rua até o ronco da Michele começar a me incomodar. Ela se ajeita na cama, sorri para o travesseiro, antes de me sentir comovido volto a olhar para a rua. Ela volta a roncar. Bato nos bolsos e deixo uma nota de cinco embaixo do copo d’água. Pego o batom na bolsa dela e escrevo na parede “obrigado”. Gentileza gera gentileza.


A cozinha tem um cheiro forte de fritura, passo um pão na frigideira recém usada e tomo um pouco do leite direto da caixa. Volto até o quarto com o pão engordurado e pego a nota debaixo do copo d’água. Com cuspe limpo a parede. “Não quero dar a impressão errada”. Fico pensando enquanto sujo as mãos de vermelho. Michele abre um olho e me encara por um longo instante, ali, com um pedaço de pão engordurado na boca e as mãos sujas de vermelho na parede borrada. Cada segundo corre uma maratona intera pra passar. Ela arqueia as sobrancelhas com pouco interesse e vira para o lado. Volto a limpar a parede.


Termino o pão e coloco o leite na geladeira. Prego a nota de cinco num dos imãs e escrevo com uma caneta meu telefone, meu email e uma frase do Neruda. Risco a frase do Neruda e escrevo uma parte de uma letra dos Sex Pistols. Pego mais uns cigarros ali por cima e encosto a porta atrás de mim. O porteiro me olha com cara de samba-enredo e abre a porta pra mim, gira nos calcanhares como se eu fosse a porta-bandeira favorita de todos os seus anos de passista. Faço uma cara feia de reprovação, mas no fundo me sinto lisonjeado.


Depois de caminhar alguns metros, me sento no meio-fio e brinco com um cigarro apagado. “Eu sempre reclamo quando o dia começa a clarear.” Falo enquanto leio a capa do jornal de um homem na parada de ônibus. Me encosto num carro estacionado e fecho os olhos esperando um cochilo gago e com gosto emadeirado. No celular uma mensagem. “Que porra é essa?”. Sorrio e deleto a mensagem. O dono do carro apita o alarme, me condena com o dedo médio enquanto liga o motor, a fuligem do cano de escapamento me soa na garganta como charuto de posto de gasolina. Espero um pouco e vou caminhando com a bunda até o próximo carro estacionado.


O sono gago se faz verdade. No final da manhã já estou na outra esquina.