quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dez Anos Antes... (Vício e aptidão)


Dez anos antes...


“Herói não morre. Não dá a vida. Nem faz nada de grande magnitude.” Fico pensando por alguns segundos. Ninguém desenhou a história em quadrinhos. Nem fez um filme milionário com explosões e crimes absurdos bem resolvidos. Eu desligo o rádio e aliso um pouco o corpo, percebo que a tatuagem do braço esquerdo precisa de retoques, já é velha, mas é útil, cobre uma cicatriz ímpar. Dependo da minha confiança, não é bom ficar me lembrando de quando tomei a decisão errada no momento certo. O relógio no alto da porta não funciona, mas marca uma hora que pode até ser que esteja certa. “Ao menos uma vez por dia...” Meneio um sorriso pra mim mesmo.


O quarto parece inundado com meu suor. O ventilador joga as gotas manchando o papel de parede. Tudo parece calmo e silencioso demais. Os sons abafados pela janela fechada vão se anulando um por um. Consigo ver meus músculos se inchando quando respiro, o peito se enche, pareço um pombo, o ar vai embora, volto a parecer um homem normal. Tento não pensar na gripe que vou pegar, se estivesse com uma camiseta por cima do corpo não faria diferença, talvez até estivesse mais suado. O cheiro de fumaça vai escalando a parede, tento acompanhar os cantos do quarto como se fossem mudar de forma.


“Tenho que ir.” Fico ensaiando sozinho, murmurando, meio uma prece, meio um palavrão fora de hora. Algo me diz pra ir, pra sair correndo. Um charuto. É só isso que eu preciso antes de ir. Os olhos vermelhos e irritados se apertam tentando compensar a luz que entra da janela, nada atraente lá fora. “Pensa rápido.” Penso comigo, onde eu poderia estar que não aqui? A cama tá desarrumada e ainda quente. O sol bate forte no meu corpo, me sinto um pouco menos negro. Marrom, negro, não faz nenhuma diferença, o sapato e o cinto apertam do mesmo jeito. Passo a mão na cabeça sem cabelos. Ando um pouco até a janela e com força levanto o vidro. O ar quente me dá um soco, o único nos últimos anos que realmente machuca.


O telefone toca e eu o deixo tocar algumas vezes. Não quero atender. Claro que eu atendo.

“Alô?” A conversa é breve, é daquelas que acabam sem parecer que começaram, os dois lados sabem tudo que vai ser dito, olho pro relógio de rua pela janela e me dou conta que estou atrasado, faz sentido ligarem. Fecho os olhos. O barulho do chuveiro vai aparecendo: o silêncio, a descarga e então o chuveiro. A porta abre e ela pergunta cheia de péssimas intenções, “Vem comigo?” não, eu nunca vou. “Não, obrigado”. A minha mão começa a pulsar, o fígado vai se contraindo, é como uma cólica. É horrível. Como um idiota baleado pelo inevitável, cambaleio até a garrafa de vodka caída perto da cama. Pronto, agora o fígado tem algo pra se preocupar. O telefone toca outra vez, não preciso atender, é só um sinal. O chuveiro continua forte. Preciso me acalmar.


Bato nos bolsos da calça. “É um mal-hábito” fico pensando. Enfio o dedo dentro do envelope transparente cheio de poeira-de-anjo, levo o dedo até a língua, ela adormece. Basta. O chuveiro desliga e enrolada na toalha ela sai do banho, me olha com olhos de café-da-manhã e sorri exibindo as pernas depiladas. Me beija. Não sinto nada. Só a respiração ofegante.


“Tem que parar de fumar, viu? Daqui a pouco tu não consegue subir escada, quem dirá...” Ela sorri, acha que tá brincando, fazendo graça. Sorrio mascarando a falta de gosto pelo humor dela. Mas que seios, que coxas. Não é hora pra me excitar, eu tenho que ir. Mais um toque no telefone. Ela não dá bola. Eu olho mais uma vez pras coxas dela.


Imito meus próprios atos vis e forço uma risada solidária com a nudez dela. Ajudo a procurar a calcinha perto do pé da cama. Eu quero ficar, quero largar tudo. Ninguém disse que eu tenho que ser bom pra combater o crime, eu não carrego um escudo com as cores do meu país, não tenho plano de saúde e dependo de um médico que perdeu o registro pra costurar minhas feridas. E pra me receitar algum analgésico.


A sobriedade é a mentira que enaltece as boas ações. Ninguém é capa de jornal bêbado prendendo vagabundo, ladrão ou assassino. As minhas fotos ficam guardadas até o fim da adolescência, de lá pra cá é a do casamento e a com o filho no colo. Ambas contam mentiras já registradas em ata. Mais uma vez o dedo, agora o nariz, só pra me enganar um pouco. Ela não dá bola, veste uma camiseta minha e deita na cama, pede pra mim aumentar a velocidade do ventilador e diz que tá com sono, pergunta se eu não vou deitar com ela, que eu posso, que não tem problema nenhum. Eu tento, falhando seguidas vezes, tropeço no sapato dela, me apoio na guarda da cama e coloco o terço ao redor do pescoço. Ela morde o lábio. “Vai com Deus.” Fala de olhos fechados, como se fosse um botão de rosa fechando, desinteressante e sem muito pra mostrar. “Fica com ele.” Vou dizendo enquanto faço o sinal da cruz.


Ela me olha como se eu não fosse voltar, como se eu fosse um condenado fugido numa visita conjugal, esperando por uma injeção ou uma bala na cabeça. Ela tem razão em pensar isso. Me ajoelho e aliso o cabelo dela. Com a pele branquinha ela parece capa de revista de fitness. Seios pequenos, corpo miúdo. Podia ainda parecer uma criança se não ficasse tão amargurada toda vez que eu saio pela porta, ou quando eu entro, sem fazer barulho, sem acordar ela. Tenho que ir. Não posso ficar, muito menos ter uma crise de consciência ou uma reviravolta na carreira.


O telefone toca mais umas quatro vezes. Não me mexo. Nem ela teima em abrir os olhos. Melhor assim pros dois. Tento mentir dizendo que volto logo, as palavras não vencem os dentes, a língua ainda dormente também não ajuda. Melhor assim, é mais honesto, não que seja uma prioridade minha. Ela se vira na cama. Dou-lhe um beijo nos ombros. Por entre os fios de cabelo vejo o rosto molhado. “É do banho.” É a primeira coisa que penso.


Mordo um pequeno pedaço da bochecha até sentir a baba viscosa de sangue. “Bom pra lembrar o que eu to fazendo e pra onde eu to indo.” Não me escondo na noite ou nas sombras. Nem com uma máscara ou tecnologias misteriosas. Não faço nenhuma espécie de favor pra ninguém. Só faço um trabalho que fica na margem do que as pessoas querem ver. Não há desabafo em bar, nem glória redentora no final. Passo a língua pelos cantos da boca e vou até a porta do quarto. Me enxugo com a toalha dela. Eu não queria suar tanto. Limpo um pouco do sangue nos dentes também.


O primeiro ímpeto é o de levar a toalha comigo. Tento não prestar atenção no perfume. Falho. Mais uma distração pra carregar comigo ou transformar em alguma cicatriz de trabalho. “Um descuido amador. Literalmente dizem os críticos.” Por um segundo não importa, passo mais uma vez a toalha no rosto e a jogo no chão. Aumento o ventilador e sorrio pra ela.


Coloco a regata branca e prendo o revolver atrás, na cintura. Jogo a jaqueta por cima do ombro e não percebo ela, revirada na cama, agora de lado me olhando com ternura e impregnada de uma admiração fajuta. Encosto a porta atrás de mim, me despeço da mobília da sala com um rápido olhar e saio tentando me lembrar da diferença entre justiça e piedade, a ferramenta que mente a importância do meu heroísmo. Enquanto isso estiver claro na minha cabeça, posso ter certeza que volto pra casa pra ver ela me olhar como se eu fizesse parte dela, como se eu nunca tivesse saído dali. Como se eu fosse voltar todos os dias.

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