quarta-feira, 30 de junho de 2010

Não sonharás: Dois momentos


I – Uma estranha verdade riscada nas costas


“Aqui minha asa faria sombra. Não sou alta, mas eu ficaria bem de asas... Não tem a ver com altura, mas sempre desenham os anjos altos demais, maiores que os gigantes. Ou mesmo os titãs.” Ela diz de um jeito manso, desvendando os braços e os abanando como se alçar vôo lhe fosse algo natural. Então os cortes por sobre a pele das costas vão formando pequenas cicatrizes, cada uma delas abraçando os traços de um anjo, uma figura com nome, com idéia, mas sem carne e sem osso. Os lábios mordidos atestam o sucesso do desenho. “Dói um pouco, né?”. Dessa vez se cala, ignora qualquer vontade de responder e busca um respiro quase fundo e que incomoda. Tenta entender o que é isso que tem nome de dor, que espeta a pele e a arranha sem cessar, tudo isso revestido numa paz exausta.


Roçando no ouvido vai crescendo a prece inevitável. Escorrendo pelo sorriso mordido a sonora diferença da maldição abençoada. Uma reza mal entoada. Mal dita. Do lado de fora, um cachorro chora e olha pelo vidro. O grunhido é quase imperceptível, ele sabe, o relojoeiro anda perto. “Desculpa o ar-condicionado, tá frio, mas já vai acabar aqui. Ficou boa...” Mas o frio não importa, dança ao redor dos seios nus e do sutiã gentilmente guardado na bancada. É um frio tímido e virgem. Letárgico, seco e sem muita força. Um ar gelado que carrega um gosto doce e nômade, se rasga por dentro com o bafo de uma frase empacada na língua e toma seu tempo pra fazer do vão entre os seios um ninho bastante breve. Mas, aindassim, ninho. Enquanto uma gota de sangue corre da tatuagem até cair no chão, o cachorro do lado de fora engasga o latido de aviso. Com o rosto entre as patas tenta um gesto humilde de calor humano. Puramente por nada. Não há o que ser feito.

“É teu aquele cachorro?”

“Pode ser...”

“Pode ser?”

“Sim, pode ser.”

“Escuta, eu te conheço de algum lugar? Tu canta? É por isso que escolheu esse desenho?”

“Só não posso cantar nos domingos.”

“Como assim?”

“Deixa pra lá. Tu não me conhece, e isso é uma coisa boa.”

A risada torpe com as agulhas na mão acompanha a pergunta débil. “Porquê? Eu ia gostar de conhecer?”

“Não. Não teria tempo. Muito menos graça.”

“Falando em graça, qual a sua?”

“Qualquer uma. Não preciso de nome... pode só terminar a tatuagem?”

“Desculpa, eu vi o cachorro chorando e...”

“É que ele vai morrer.”

“Ele tá doente? É teu então o cachorro.”

“Não. O cachorro só chora quando a morte tá perto.”

Aí vem o deboche, o olhar desleixado e a piada que para nos lábios. Papo careta, ele pensa, deve ser uma carola de igreja com crise de identidade. Ele julga. O cachorro chora mais uma vez. Ele engole seco e volta a desenhar na pele dela.


II – Sons mudos de uma voz proibida


Tenho medo da selvageria dos anjos. Tenho medo dos desejos pelos quais rezam. Queria poder me entregar a essa fantasia. Todos os dias me perder no que eles calam, e nos calos das cordas vocais maltratadas deles, condenadas a cantar todos os dias, menos no domingo, menos no dia em que o homem deveria cantar mas se esconde no silêncio.


Cada anjo limpa com sua túnica a sujeira divina e são eles que sonham comigo, que começam e terminam num silêncio, numa mudez que escapa a boca e vive numa ânsia por uma... por um tipo de beijo de boa noite. Por um fim. Eles têm seis asas, uma para cada dia da semana em que devem cantar. Seus rostos desfigurados não ganharam a graça divina, não foram esculpidos semelhantes a imagem de Deus, foram escarrados para olhar por sobre uma criação pífia e imperfeita. Seus rostos, ao contrário das faces dos homens, borbulham do barro empastado do marfim de um elefante morto, são a perfeição do descaso divino, de uma servidão imbecil e penosa. No dia de domingo, no miado dos poucos homens que cantam, os anjos vibram com os hinos de rebeldia fiel, com suas perversões insonháveis e com as penas que caem entre as nuvens e apunhalam os corações mudos.


Santo anjo do senhor... sempre me rege... A oração dos anjos é quase uma orquestra de sonhos deixados de lado, eu sou o faxineiro dessa orquestra. Não importa se noite ou dia, eu tenho um reino a perder de vista, mas sem soberania alguma. Me criam, me fazem disforme como eles ou como sua inveja. Eu só existo nessa fantasia despedaçada e proibida, é a única condenação pior que a deles, e já não sei mais quantos já fui, se já sou outro enquanto tendo desvendar e desiliar essa amargura. Eu Sou antes deles. Ser. Isso ainda posso, mesmo me despedaçando sem espaço pra contar ou tempo pra pisar. Os inversos quase me abrigam, mas, se eu entrasse, deixariam de ser inversos, e mesmo me oferecendo uma piedade solene, eles me temem, morrem quando me tocam. Pobres inversos. No fundo sou eu quem chora por pena, eu choro um rio sem leito quando posso. Eu Sou. Sem início ou fim, sempre existe um anjo sonhando enquanto os outros acordam, assim eles me mantém vivo, em turnos, sem dar bola pra minha fome, minha andança sem rumo, minha vontade seca feito poço triste. Mas, nos domingos, nos domingos eu posso ser o cachorro que chora quando o relojoeiro vem parar os ponteiros dos outros, ou ensinar pra vida que no útero dela bate um relógio com uma pilha fraca ou sem corda pra dar, sem correr pra onde ter. E com apenas um lugar para fugir. Eu fico surdo com os cantos angelicais, não são alento nem pra mim, muito menos pra ninguém. No silêncio dos homens eu não simplesmente sou, eu posso.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Rascunho pra noite mais longa do ano

Depois do teu sorriso, tua melhor arma é o conta-gotas. Pinga gordos pedaços de água aqui e ali, às vezes com os olhos, sem se dar conta, sem nem imaginar que dali corria algo. Às vezes com a língua, tateando por um pedaço teu que fica viajando de ponto-em-ponto pra te surpreender no fim do dia. Pinga umas frases curtas, respostas rápidas e cheias de tanto por redor.


Tu pinga e alucina, sai de si. Si não, é a última nota da escala natural, prefiro o Dó e Lá menor. La menor. La pequeña. Pequenina alucinação distorcida com cores sóbrias e tigrados de uma fábula escrita na cama. Frases rápidas e curtas. Gemidos curtos e demorados.


Eu percebo os contrastes favoritos, guardo eles num relicário meio acordado meio dormindo, um bocado preguiçoso. Tu brinca com as minhas cores, minha elegância fajuta, meu mau-caratismo pouco convincente mas tão bonito. Um pouco bruto, um pouco cheio de nada, um bocado carinhoso de boca cheia.


Eu te conto uma receita de bolo enquanto teu pé brinca de chão com o meu. E as horas não passam nunca, a gente tem o nosso tempo, a nossa medida pra tudo. Sem tocar no adorável exagero do que nos encanta, e às vezes tu não nota que eu tô sempre cantando, principalmente quando eu tapo a falta que tu vai fazer com o resto dos minutos que o carteado me dá. Daí a gente vê que o tempo passa rápido, nos dá um soco e vai demorando até o interfone tocar outra vez.


A noite é longa, tu vai falando meio no meu pescoço. Meio dentro da minha boca. A noite é minha e tua sem tu acreditar. Aí tu te acostuma até se surpreender outra vez, tu tenta debater com a idéia de que eu nunca vou embora, mesmo quando é tu quem vai embora. Bobagem, ninguém vai a lugar nenhum. Shh, não conta pra ninguém, a gente tá sempre ali.


Escrevo sem pensar, sem medir, tenho certeza que tu prefere assim, sem a borda rebuscada e a métrica perfeita. Sem rima rica. Sem nada. Tu gosta das coisas nuas, principalmente quando parte de mim. Te pego num quadro no olhar, mapeando um pedaço meu de pele, meu cheiro, do que tu gosta, do que tu não gosta tanto e o que tu nunca tinha pensado em gostar, mas aí já não vive sem. Nossa, como tu presta atenção em mim, logo eu que não digo nada dizendo tudo pra só falar procurando um ponto pra frase. Ele é meio anacrônico, mas é meu. Outra vez, shh, não conta pra ele, deixa ele desconfiar, a gente se gosta nos fiapos, sem pressa, numas linhas demoradas. Posso rimar mudez com nudez? Quantos absurdos eu posso falar sem roupa sem te deixar entediada? Tudo. Todos. Sim. Gosto. E os convites...


Feito dois criminosos, abandonamos o mundo. Dois fujões excitados num ônibus teimoso e lerdo. Com dor tu me convida pra anoitecer e espanta o cansaço com qualquer sorte de desejo, um pouco bêbados de sono, um pouco embriagados de nós mesmos, dos nossos silêncios, dos nossos casos pela porta no corredor-elevador. Daí, por acaso eu me sinto em casa. E sem perceber tu me faz casa num colo desajeitado.


A gente nunca percebe nada. Quando vê, tem uma luz vermelha banhando tudo num gesto de alerta! Cuidado, é perigoso! E o perigo sai de cena pela coxia pra só voltar no último ato, receber os aplausos do público por causa de qualquer bobagem performática que só a gente traduz do nosso jeito. E sem perceber nada a gente já tem o nosso jeito. Geralmente quando a luz vermelha apaga é quando começa a saudade.


E ela sempre começa.

All the time, every minute.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Dez Anos Antes... (Vício e aptidão)


Dez anos antes...


“Herói não morre. Não dá a vida. Nem faz nada de grande magnitude.” Fico pensando por alguns segundos. Ninguém desenhou a história em quadrinhos. Nem fez um filme milionário com explosões e crimes absurdos bem resolvidos. Eu desligo o rádio e aliso um pouco o corpo, percebo que a tatuagem do braço esquerdo precisa de retoques, já é velha, mas é útil, cobre uma cicatriz ímpar. Dependo da minha confiança, não é bom ficar me lembrando de quando tomei a decisão errada no momento certo. O relógio no alto da porta não funciona, mas marca uma hora que pode até ser que esteja certa. “Ao menos uma vez por dia...” Meneio um sorriso pra mim mesmo.


O quarto parece inundado com meu suor. O ventilador joga as gotas manchando o papel de parede. Tudo parece calmo e silencioso demais. Os sons abafados pela janela fechada vão se anulando um por um. Consigo ver meus músculos se inchando quando respiro, o peito se enche, pareço um pombo, o ar vai embora, volto a parecer um homem normal. Tento não pensar na gripe que vou pegar, se estivesse com uma camiseta por cima do corpo não faria diferença, talvez até estivesse mais suado. O cheiro de fumaça vai escalando a parede, tento acompanhar os cantos do quarto como se fossem mudar de forma.


“Tenho que ir.” Fico ensaiando sozinho, murmurando, meio uma prece, meio um palavrão fora de hora. Algo me diz pra ir, pra sair correndo. Um charuto. É só isso que eu preciso antes de ir. Os olhos vermelhos e irritados se apertam tentando compensar a luz que entra da janela, nada atraente lá fora. “Pensa rápido.” Penso comigo, onde eu poderia estar que não aqui? A cama tá desarrumada e ainda quente. O sol bate forte no meu corpo, me sinto um pouco menos negro. Marrom, negro, não faz nenhuma diferença, o sapato e o cinto apertam do mesmo jeito. Passo a mão na cabeça sem cabelos. Ando um pouco até a janela e com força levanto o vidro. O ar quente me dá um soco, o único nos últimos anos que realmente machuca.


O telefone toca e eu o deixo tocar algumas vezes. Não quero atender. Claro que eu atendo.

“Alô?” A conversa é breve, é daquelas que acabam sem parecer que começaram, os dois lados sabem tudo que vai ser dito, olho pro relógio de rua pela janela e me dou conta que estou atrasado, faz sentido ligarem. Fecho os olhos. O barulho do chuveiro vai aparecendo: o silêncio, a descarga e então o chuveiro. A porta abre e ela pergunta cheia de péssimas intenções, “Vem comigo?” não, eu nunca vou. “Não, obrigado”. A minha mão começa a pulsar, o fígado vai se contraindo, é como uma cólica. É horrível. Como um idiota baleado pelo inevitável, cambaleio até a garrafa de vodka caída perto da cama. Pronto, agora o fígado tem algo pra se preocupar. O telefone toca outra vez, não preciso atender, é só um sinal. O chuveiro continua forte. Preciso me acalmar.


Bato nos bolsos da calça. “É um mal-hábito” fico pensando. Enfio o dedo dentro do envelope transparente cheio de poeira-de-anjo, levo o dedo até a língua, ela adormece. Basta. O chuveiro desliga e enrolada na toalha ela sai do banho, me olha com olhos de café-da-manhã e sorri exibindo as pernas depiladas. Me beija. Não sinto nada. Só a respiração ofegante.


“Tem que parar de fumar, viu? Daqui a pouco tu não consegue subir escada, quem dirá...” Ela sorri, acha que tá brincando, fazendo graça. Sorrio mascarando a falta de gosto pelo humor dela. Mas que seios, que coxas. Não é hora pra me excitar, eu tenho que ir. Mais um toque no telefone. Ela não dá bola. Eu olho mais uma vez pras coxas dela.


Imito meus próprios atos vis e forço uma risada solidária com a nudez dela. Ajudo a procurar a calcinha perto do pé da cama. Eu quero ficar, quero largar tudo. Ninguém disse que eu tenho que ser bom pra combater o crime, eu não carrego um escudo com as cores do meu país, não tenho plano de saúde e dependo de um médico que perdeu o registro pra costurar minhas feridas. E pra me receitar algum analgésico.


A sobriedade é a mentira que enaltece as boas ações. Ninguém é capa de jornal bêbado prendendo vagabundo, ladrão ou assassino. As minhas fotos ficam guardadas até o fim da adolescência, de lá pra cá é a do casamento e a com o filho no colo. Ambas contam mentiras já registradas em ata. Mais uma vez o dedo, agora o nariz, só pra me enganar um pouco. Ela não dá bola, veste uma camiseta minha e deita na cama, pede pra mim aumentar a velocidade do ventilador e diz que tá com sono, pergunta se eu não vou deitar com ela, que eu posso, que não tem problema nenhum. Eu tento, falhando seguidas vezes, tropeço no sapato dela, me apoio na guarda da cama e coloco o terço ao redor do pescoço. Ela morde o lábio. “Vai com Deus.” Fala de olhos fechados, como se fosse um botão de rosa fechando, desinteressante e sem muito pra mostrar. “Fica com ele.” Vou dizendo enquanto faço o sinal da cruz.


Ela me olha como se eu não fosse voltar, como se eu fosse um condenado fugido numa visita conjugal, esperando por uma injeção ou uma bala na cabeça. Ela tem razão em pensar isso. Me ajoelho e aliso o cabelo dela. Com a pele branquinha ela parece capa de revista de fitness. Seios pequenos, corpo miúdo. Podia ainda parecer uma criança se não ficasse tão amargurada toda vez que eu saio pela porta, ou quando eu entro, sem fazer barulho, sem acordar ela. Tenho que ir. Não posso ficar, muito menos ter uma crise de consciência ou uma reviravolta na carreira.


O telefone toca mais umas quatro vezes. Não me mexo. Nem ela teima em abrir os olhos. Melhor assim pros dois. Tento mentir dizendo que volto logo, as palavras não vencem os dentes, a língua ainda dormente também não ajuda. Melhor assim, é mais honesto, não que seja uma prioridade minha. Ela se vira na cama. Dou-lhe um beijo nos ombros. Por entre os fios de cabelo vejo o rosto molhado. “É do banho.” É a primeira coisa que penso.


Mordo um pequeno pedaço da bochecha até sentir a baba viscosa de sangue. “Bom pra lembrar o que eu to fazendo e pra onde eu to indo.” Não me escondo na noite ou nas sombras. Nem com uma máscara ou tecnologias misteriosas. Não faço nenhuma espécie de favor pra ninguém. Só faço um trabalho que fica na margem do que as pessoas querem ver. Não há desabafo em bar, nem glória redentora no final. Passo a língua pelos cantos da boca e vou até a porta do quarto. Me enxugo com a toalha dela. Eu não queria suar tanto. Limpo um pouco do sangue nos dentes também.


O primeiro ímpeto é o de levar a toalha comigo. Tento não prestar atenção no perfume. Falho. Mais uma distração pra carregar comigo ou transformar em alguma cicatriz de trabalho. “Um descuido amador. Literalmente dizem os críticos.” Por um segundo não importa, passo mais uma vez a toalha no rosto e a jogo no chão. Aumento o ventilador e sorrio pra ela.


Coloco a regata branca e prendo o revolver atrás, na cintura. Jogo a jaqueta por cima do ombro e não percebo ela, revirada na cama, agora de lado me olhando com ternura e impregnada de uma admiração fajuta. Encosto a porta atrás de mim, me despeço da mobília da sala com um rápido olhar e saio tentando me lembrar da diferença entre justiça e piedade, a ferramenta que mente a importância do meu heroísmo. Enquanto isso estiver claro na minha cabeça, posso ter certeza que volto pra casa pra ver ela me olhar como se eu fizesse parte dela, como se eu nunca tivesse saído dali. Como se eu fosse voltar todos os dias.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dez Anos Depois...(O olhar teimoso)

Dez anos depois...

Tu te pendurava no meu pescoço e me esperava alçar vôo pela janela. Num afago me batizava com super-poderes que eu jurava ter. Eu olho para todos os lados do meu apartamento vazio: vejo as coisas encaixotadas, uma barata morta num canto, a poeira balançando em cima de uma pilha de livros como se fizesse hola num estádio lotado. Em algum canto ficam as marcas dos anos e as brigas absurdas, bobas e necessárias que rasgaram o tempo ali. No espelho da sala meu reflexo não me mostra herói algum, meu avental de cozinha não parece capa, nem de herói cubano subdesenvolvido, nem hollywoodiano. Desculpa. Não me sinto nenhum tipo de herói.

Eu me perdia no teu riso. Era assim quase todos os dias. Tu te enrolava no meu peito, arrancava uns pelinhos e mandava eu não ser fresco, não reclamar de dor, daí a gente ria junto. Eu era o ator das tuas comédias favoritas, e tu escrevia elas no meu corpo com lápis de olho, batom, hidratante. Um monte de letras narrando um monte de mentiras que teimavam em se repetir. Daí eu desligava o abajur e ficava de olho no teu sono, como sentinela. Como vigilante. Até o meu sono me vencer sem trégua nenhuma, e tu sorria como se pouco importasse. Eram minhas derrotas favoritas.

Eu acordava e te via enrolada numa toalha que mais parecia uma capa. Aí tu era minha heroína, corria na minha veia e pelo quarto, até eu te lembrar que tu não era mais criança para aquilo. Pura birra, eu que não fantasiava mais. Já não era mais herói de nada, não salvava ninguém, nem a mim mesmo das minhas péssimas idéias. Meu calendário pulava o dia do veterano. Eu não me encontrava às quartas-feiras pra jogar xadrez com algum louco de guerra ou vilão numa camisa de força. Eu era o garoto envelhecido que te amava, e que salvava o mundo dum mal mais inventado que os moinhos do Quixote. Quanto mais eu inventava, mais tu sorria. E quanto mais tu sorria, maiores eram os loucos que eu enfrentava. O problema era a loucura, sempre. E quem me salvava dela era sempre tu, eu acho.

Dum canto o chefe de polícia, o diretor de teatro, o presidente, todo mundo me acena, é a deixa para perder o controle, me entregar a um grito no meio da chuva, visto de cima por uma platéia incrédula. "Vamos celebrar a derrota!" Aí vem o gosto de cerveja quente na boca. Não, nada disso. Se tu pudesse me ver agora, me veria um pouco triste, um pouco choroso talvez. O barulho do vidro quebrado me batia segundo sim, segundo não. O trânsito parando ao redor era assustador. Os flashes de memória vão se ensanduichando, um no colo do outro. Ninguém te deixava tão extasiada com histórias do cotidiano como eu. Não tinha heroísmo ali, no contar as histórias, os cacos de vidro do pára-brisa e os vergões no teu pescoço que o cinto pregava.

Não. Recordar não é viver. Recordar é morrer muitas vezes de mãos atadas. Eu me levanto com alguma revolta preguiçosa pulsando no corpo. Deixo de lado a fantasia de vestir e a de pintar na frente dos olhos. Chuto uma das caixas com a palavra "Frágil" escrita em letras grandes. O som de coisas quebrando me é familiar, como um vizinho que chega sempre na mesma hora que eu, sempre vindo de um trabalho indiferente de classe média. A gente nunca deu bola pros vizinhos. Nem pra classe média. Recordar não é viver, é matar. Quando tem algo fora do lugar, a lembrança só tinge de um tom confuso o que era simples e ao alcance das mãos. O apartamento vazio e encaixotado me soa quase assim. Enquanto fecho a porta atrás das minhas costas me dou conta do meu novo super-poder, do meu fado heróico: a habilidade de não ter memória nova de nada. Aí eu começo a cantar uma música do Frank Sinatra enquanto me esqueço de assoviar.

domingo, 6 de junho de 2010

Como se fosse cereja


Jezebel senta no tapete, tira um pouco do esmalte das unhas dos pés e, com algum zelo, ajeita o vestido rodeando o chão. Brinca com a barra por sobra as coxas, bastante brancas e um pouco marcadas pela meia-calça fininha. "... un diablo viejo y borracho..." As palavras quase caem da boca. Joelhos contra os seios, praços cruzados na frente dos joelhos, queixo apoiado nos braços. Jezebel não dá bola pra alça da blusa caída, nem pro bico do peito transbordando o decote. "... Lejos. Que hemos intentado ayer?". O choro vem e faz coro com o pouco de chuva que teima pela fresta da janela.


Ela sorri como se fizesse um bom grado para aquele pranto fora do lugar. Bem como havia prometido fazer se não conseguisse pensar em outra coisa. O olhar atrás do rímel vai minguando, finge uma fase de lua e fica mais claro por causa do néon do motel na frente do prédio. O Martini seco nos lábios soa como um batom passado às pressas, sem intenção de tocar outra boca, apenas de deixar a pele branca com um aspecto mais saudável, menos enclausurada entre um minuto e outro.


O abajur com pedestal baixo trata de banhar toda a sala com uma luz levemente avermelhada, culpa da lanterna chinesa, fácil de digerir e de ignorar. Uma luz que se mescla com o marrom dos móveis, das molduras das fotos, das gavetas desarrumadas, cheias de coisas chatas pra serem lembradas, fotografadas, letradas, pagas, enclausuradas, contadas, ordenadas e condenadas a verbos que pouco lhe dizem respeito.


O silêncio é impecável, se entranha no canto do olhar e vai esmaecendo por debaixo das portas e pela ventana aberta. "¿No me vas a coger?" O tiritar dos pingos que ficavam no vidro começaram a fazer coro com as unhas da gata tipitando o parquet do apartamento. As fotos no alto da cristaleira ficam soando como um inquilino que não paga aluguel, ainda por cima, desaforado. Hóspede ingrato. Cada foto ali pode juntar suas malas e dar o fora, sem olhar pra trás, sem brincar de resquícios. Jezebel, condena as fotos enquanto arranca pequenas tiras de papel de parede, elas rasgam com facilidade e revelam o reboco velho e rugoso, feito com bastante preguiça.


No centro da sala, os móveis velam um cavalete solitário que segura uma tela quase em branco, marcada apenas por uns teste de tinta em uma das bordas, tons cianos e alguns avermelhados, quase uma paleta de pôr-do-sol infantil. Cinzas de cigarro também se misturam no pigmento. As cortinas roxas dançam um balé imaginário, coreografias sincronizadas de cada lado de uma janela aberta e chorosa. Balançam em uma mistura de ritmos frenéticos e suaves, tocando o chão e o teto, por vezes os dois ao mesmo tempo. Até se sentar ali no chão, Jezebel nunca se dera conta de como havia sentido falta de dançar um balé assim, como jamais quisera, mas, sempre sentira falta.


Os sentidos entorpecidos ajudam o olhar de Jezebel a se perder pelo teto, como faz a gata, sentada não muito longe. O jacquard felpudo da cortina derruba um dos potinhos de tinta, e ela escorre pelo chão até tocar os dedos do pé de Jezebel, que se encolhe rápidamente, num susto, prensando os joelhos ainda mais contra os seios.


Sem muito jeito, Jezebel desenha seu nome na tinta escorrida no chão, olha pra janela e junta o dedo sujo aos lábios, faz um nobre sinal de silêncio.


Shhh.


Parada na frente do quadro, ainda com a alça do vestido caída, suja de tinta por onde a pele se mostra, e os dedos e as unhas do pé esquerdo manchadas de preto. Jezebel, sem hesitar, abraça a tela e cola a bochecha nela tentando esquentá-la da forma mais materna possível. Do lado de fora cessam os ventos e os pingos pesados agora viram uma danças de riscos leves que pairam no ar. No tornozelo de Jezebel, uma tornozeleira de corrente fininha, nela, a palavra cereja.


Longe. Do outro lado da porta que dá para o corredor. Um punho fechado bate na porta. A voz baixa. "Sou eu."


Mais uma vez.

"Sou eu, Jezebel."


O silencio, agora, mais uma vez, repousa sobre todos os objetos como um lençol jogado com desdém sobre uma poltrona feia tentando escondê-la.


Jezebel vai até a porta e espia pelo olho-mágico, sem encanto, sorri para si mesma e limpa o dedo sujo de tinta na blusa e na saia.


“Surpresa. Eu voltei” diz a pessoa do outro lado, pingando e embrulhado em uma jaqueta de couro.

"Eu não vou abrir."


Sentada no chão ela brinca com a tornozeleira. Dá as costas para a porta. Do outro lado a pessoa escorrega pela porta e senta de costas também. O barulho do isqueiro chama atenção de Jezebel, o cheiro do cigarro invade a porta sem um convite formal.


“Não gosto quando tu fuma”, dito com simplicidade, beirando um miado.


“Só fumo quando estou triste, quando tenho saudade” intercalando uma frase com uma tragada de cigarro.

A resposta da pessoa do lado de fora do apartamento de Jezebel vem com pouco caso e sem pressa.

Jezebel sorri misturando o resto de tinta no dedo com o rímel do olho, um tentativa besta de amparar uma lágrima que não estava ali. Ela segue. "Achei que já tinha te dado tchau hoje."


"Já deu."

"Dei sim."


Aí a pausa tragada pelo cigarro e pela garganta ardida de Jezebel do outro lado da porta, pensando no que dizer. "Quando eu tô sozinha eu falo em castellano."


"Eu sei."

"Como?"

"A gata me contou."

"Acho que gosto de ti."

"Acha? Quando vai saber?"

"Quando o frio desaparecer... lembra?"



terça-feira, 1 de junho de 2010

*Pausa nos Verbetes* Coisas de olhar (num domingo)

Tu me olha curiosa, como quem olha o céu sem saber que se trata apenas de um enfeitado cemitério de luzes. Brinca de relicário com alguma lembrança nova, um pouco minha, um pouco tua, e se desfaz num encanto bobo, quase mundano.

Gosto do teu jeito de pedir petit-gateau no café, essas colheradas descabidas e teu olhar me procurando do outro lado da mesa, com a rua de fundo como se fosse Montmartre.

Parece que gosto do que tua blusa esconde, o que sobra do meu jeito bruto de dizer que estou contente ali do teu lado no sofá. Até eu te jogar em algum lugar ou te pegar no colo... Ou fumar um cigarro na janela sem ninguém me cuidar.

“Tu já foi loira?” pergunto juntando tua franja com meus dedos, contando os fios e passeando com os olhos, cuidando pra tu não me pegar notando o topo dos teus seios pela blusa.

Eu não premedito qualquer carinho, nem condeno os guardanapos às bobagens que eu fico escrevendo. Parece que tem algum segredo ali, um perfume incerto e o jeito que tu te contradiz, a maneira como tu me deseja em silêncio. Daí aparece algum entardecer. "Posso fugir?" Claro que não, de quê? De quêm? E tu até finge muito bem gostar das minhas respostas vagas e do cheiro de sexo que fica no quarto ao redor dos gatos.

Mas claro que eu escrevo. Tento me decifrar te oferecendo um mimo, algo para te entreter enquanto a vida passa. E eu fico te olhando. Sou bom em ficar te olhando, decorando por onde irradia esse brilho hipnótico que vem pro mundo entre um piscar e outro.

Me calo por enquanto.

Sorrio e te digo que isso é bossa nova, que isso é muito natural. E tu ouve até meu silêncio como se fosse grande coisa. “Aposto que tu chora...” Interrompo minha própria frase, como se fosse grande coisa, já não sabendo se falava da empáfia penosa que é ter de ficar ouvindo algum poeta ou a saudade sepultada nos lábios, tremendo sem saber por onde começar.