domingo, 15 de janeiro de 2012

Boa noite, branca de neve

Mentir dizendo que se abre mão da verdade ainda é uma maneira de preferir algo, mesmo não se dando conta ou se convencendo do contrário. Existe uma sinceridade gasta nesses gestos e frases sem grande preocupação com a honestidade. Não fazem par com nada, não dão “bom dia”, muito menos expressam a gratidão infantil e débil de que todos parecem tanto sentir falta. É um amor ligeiro, de intervalo comercial, inventado e pautado pelo crime que encabeça o noticiário: Hoje, às nove e cinquenta da noite aconteceu o estupro da fantasia pelo desejo. Mais notícias no seu jornal local após a novela das oito às nove e quinze.

“Essa gente carente me cansa. O jornal também, assim que ele começa me dá a sensação de que já vi esse episódio, será que falta muito para a próxima temporada?”

Das janelas do prédio da frente consigo assistir amores fartos de falta de sincronia, síncopes de uma cumplicidade bandida. Um amor de outro alguém, travestido num beijo regurgitado e expulso com uma ardência um bocado familiar. As primeiras gotas de suor caem por sobre as unhas no sofá atrapalhando a vista bucólica da sala de estar. O verde do musgo das paredes, o pé de maconha num canto, os gerânios em coma no outro, o manjericão ressecado pendurado no lustre. É praticamente uma pintura impressionista, a única coisa faltando é a impressão de alguém.

“Pra que tanta ironia hoje?...”

Nada se aninha, descrevo a libido com o batom de alguém no lençol jogado por cima do guarda-corpo na janela. Caio na tentação de descrever o batom de alguém com o pouco de libido que ainda resta. Acabo descrevendo o lençol com a libido de alguém com o pouco de batom que me resta no canto da boca. A luz do abajur pisca, oscila junto com a corrente elétrica e a constante ameaça dos blackouts de verão, meu corpo se estremesse interpretando isso como um toque de recolher. As roupas despencam do corpo e dão lugar a outros pudores mínimos. O ritual inevitável avança pelo terrível segundo ato.

Enxaguo os remédios, recentemente prescritos, goela abaixo com resto de água da máquina de lavar louça. É a deixa para a interminável sequência de derrotas minimalistas. Os pés, as pálpebras, todos tombam. Minha alma me olha e me julga enquanto estaciona sua cadeira de rodas num canto perto do marco da porta. Ela ri da minha paranóia e me condena ao mundo do indesejável, das coisas impróprias, da mais absoluta tirania que é desejar exatamente aquilo que se merece. Aos Deuses já devo, em promessas e moeda local, mais de um par de vidas inteiras vividas sem doença, sem suicídio. São inúmeras condenações a existir do início ao fim, mas sempre com a mira de alguém bolinando o crânio, sem perceber ou ser visto. Sem ter um instrumento pra imaginar a hora do disparo. Muito menos abstrair sua existência. Harmonia, alegria, viva Maria la Santa.

Eu transpiro, encharco o carpete, a cama e os azulejos brancos do banheiro. “Pro ar entrar...” ele tem que sair. E sai como se fosse um pingo de alegria torpe. A euforia cavalga pelas risadas sem pé nem cabeça mas com um belo corpo. Me escuto num murmúrio quase miado, adequando o sorriso à inevitável derrota da mente desperta se despedindo. “Só mais um amor rápido. Uma paixão ligeira. Inventada. Só mais uma. Só por hoje.”

Só por hoje.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Senso Comum - Primeira Parte!




Um bom dia começa na banheira, não necessariamente às cinco da tarde, como hoje, mas, como é bom poder gozar desse prazer, a água morna, meu pau murcho, a breve pancinha de cerveja que eu teimo em empurrar pra dentro em ciclos pouco saudáveis de respiração. As duas aspirinas já começam a fazer efeito. Tomo elas com água do banho mesmo, tô nem aí. Eu finjo escutar o silêncio, mas presto atenção no som que vem da rua, a vizinha aburrida estacionando a porra do carro do marido, sempre arranhando ou encostando na parede da garagem.
“Uma hora dessas ela vai abrir a porta do carro na minha caminhonete.” Comento em voz baixa, só com o nariz e a boca para fora da água. Sorrio com o cinismo que me convém e já calculo o custo da chapeação ou martelinho de ouro.

Os sons vão parando e a água vai ficando cada vez mais presente.
“Aqui é o capitão Petit-gâteau. Estamos nos aproximando de uma profundidade de oitocentos metros. Posso dizer que o oceano é um lugar azul-escuro e bonito. Não há nada para se fazer em um submarino, o outro tripulante parece adormecido sobre um saco de bolas num ginásio velho. Já não há mais peixes para catalogar, só me resta a garrafa de gin que Gertrude me deu no porto de Franz-Statenport, uma colônia germânica no sul da África. Para constar a decepção lá não havia nada francês, ou alguém chamado Franz.”

Tateio pela garrafa de gin do lado de fora da banheira, empino-a num gole e me afogo ao afundar o nariz na água.
“Senhores tripulantes, aviso que a maldição da amante Alemã nos acompanha nessa expedição.”

Foi por isso que a gente se separou, não foi? Meu senso de humor de qualidade duvidosa, minha acuidade histórica e essa barba mal desenhada no rosto. Só pode ter sido. Não podem ter sido as brigas. Eu te vi brigar com outros caras. Eu te consolei – pra não dizer que te comi – quando tu tava meio baixo-astral e carente. Não pode ter sido pelas crianças, a gente nunca teve elas, e a que tu herdou do teu primeiro marido, “Que Deus o tenha”, fica depositada na casa da tua mãe acumulando juros para um futuro saque conveniente – tipo na festa de fim de ano da Firma, quando tu mostra que merece o aumento porque é mãe solteira e tudo mais.

“Tu foi embora porque...” Vou falando enquanto me levanto da banheira e espio pela janela que dá pra rua.

“Porque o filho da puta do cachorro da gorda tá virando todo meu lixo. Depois essa biscateira vem reclamar que minha calçada é um porqueira do cacete. Porra, que merda.” Tu também pode ter ido embora porque eu falo palavrão pra caralho. É, é possível, mas não é provável. Tu adorava falar palavrão também, no fundo eu fiquei sem entender porque mulher adora xingar enquanto tá trepando. Vai saber. E agora, perto dos quarenta, no posto de ex-marido, fico impossibilitado de saber. Aliás, quem souber pode largar no Twitter e fazer a alegria do pessoal. Que bela bosta.

Já no quarto eu separo uma camisa de botões, uma que tu implicava que era rosa e eu dizia que era um salmão escuro, distinto. Me sento na cama. Eu até penso em me masturbar, mas não te dou essa alegria, claro que, dadas as circunstâncias, eu acabaria pensando em ti e esse tesão que é a nostalgia. Não, o banho foi ótimo, a noite começou boa, não dá pra ir fazendo essas concessões, imagina se meu psiquiatra descobre? Pior ainda, imagina se o gerente do banco descobre? Em ambos os casos eu iria acabar ouvindo um sermão fodido, cheio de moralismo judaico-financeiro de maior conveniência.
“Oxalá meu pai!” Ainda tem um pouco de dignidade nesse corpinho. Vou falando, já de cueca, vencendo o limiar das primeiras peças de roupa.

“Coloco perfume?” Dilema exclusivamente masculino, visto que para a mulher, no nascimento de tal dúvida, a resposta é como um parasita que vem junto, e é sempre sim, muito perfume, o suficiente pra dar alergia ou proporcionar o adorável gosto de álcool quando o cara beijo o pescoço. Nice. Ligo a tevê e me deixo hipnotizar pelos gols da rodada. Sempre tem um pra reclamar que a religião é o ópio do povo. Porra, vai reclamar de impedimento mal marcado pra ver o que é o ópio do povo. No fundo, futebol e religião são mesma merda. Sempre tem um pagando demais pra quem não faz nada, fica lá, de mãozinha pra cima agitando a torcida, vai pra casa de carrão e fica olhando as dançarinas de programa da auditório como todo mundo. Não tem como levar isso a sério. E sempre tem um monte de gente discutindo nos programas de tevê, quem tem razão, porra, ninguém. Jogo é jogo. Missa é missa. O resultado dos dois a gente já sabe. O que muda é o que se comemora no fim do ano – seja um time diferente, ganhando o campeonato, ou um elenco diferente no presépio vivo.

E é claro que o spray do perfume me tira do transe, bem no meio do compacto do jogo do líder do campeonato. Eu dou uma cafungada embaixo do sovaco. “Não adianta, banho de banheira não limpa o cara direito.” Eu termino de me vestir. “Azar.”

Não que eu seja um boçal, mas se tu pudesse ler meus pensamentos, acho que tu nunca teria ido pra cama comigo. Quem sabe tu até tinha me beijado, aquela coisa, meio machão, barba na cara, homem maduro, tá assim só pra me impressionar. E ainda tem um trabalho digno, texto publicitário, deve ser culto. Daí tu vai lá e vê que eu sou assim o tempo todo. Abobado, às vezes grosso, impaciente, cheio de manias. Excepcionalmente comum.
“Porra, é isso, é por isso que tu foi embora.”

É. Não. Se eu fosse um gentleman tu ia me achar muito chato. Muito almofadinha. Mas eu tenho meus momentos de dúvida, sabe? Eu to de calça social, mas não sei se coloco sapato ou o meu all-star. Eu realmente não quero parecer ridículo... Só que, pô, eu já to com trinta e oito, uma hora a gente cansa, assume a caretice e continua vivendo numa boa. Paga IPTU. Não leva multa de trânsito e ganha desconto no IPVA, não anda mais com dinheiro na carteira, só com cartão de crédito. Até na fila do caixa do supermercado tento aquela piadinha que tu detesta: Tenho mais cartões aqui que cartas no baralho.

Daí eu dou uma risada honesta, a mocinha que não tem culpa de nada deixa escapar uma risada protocolar e olha pra ti com aquela cara de “como tu consegue dar pra esse idiota, só pode ser bom de cama”. É, daí tu vê que ela faz aquele sorrisinho de quem pensou putaria e vai lá e me tasca um beijo ou aperta minha bunda, marca o território, só pra eu parar de olhar pra porcaria da menina atrás do caixa. Funciona. Sempre. E claro que o empacotador, um desses cheios de espinhas na cara e unhas sujas, fica olhando tudo sem saber muito bem se ri, se olha pro teu decote, se empacota mais rápido as nossas compras, acreditando com uma fé de final de copa do mundo que eu vou dar uma de turista e dar uma gorjeta pra ele. Não. Essa aí não funciona. Quase nunca.

Eu coloco a porcaria do all-star. “Seja o que Deus quisar.” Faço um rápido sinal da cruz e deixo a porta bater atrás de mim.


(continua em breve, acompanhe!)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Falso Frio


“Não é verdade. Aos poucos eu... Eu juro que sim. Eu prometo, eu valido. Não sei, talvez seja uma mentira esquisita, uma espécia de verdade que pinga por aí, fica vazia, suja o chão e o carpete. Cuida pra não derrubar nada, especialmente as coisas que não são tuas. Sempre me disseram que era falta de educação. Eu nunca dei bola pra isso, a não ser... Thanks, adoro interrupções. Um abraço, ao menos um abraço, alguma coisa que seja o oposto do frio. Hoje de manhã não dava pra ver nada por causa da cerração. Até o meu cigarro ficou úmido.”

Eu estico a perna, desarrumo o lençol e tu vai logo reclamando do frio, eu nunca te deixei terminar uma frase sequer na vida. E tu ainda me provoca, fica cantando uma música do Caetano e me encurrala com um sorriso de miss-melhores-quarenta-minutos-da-minha-semana. “Porque tu não te enrola no lençol e vai até ali fechar a janela?” Te pergunto com as piores intenções, já imaginando qualquer pedaço da tua nudez semi-aparecendo e me embalando num sonho acordado, rebolado e num meio tom além do que minha voz alcança. Tu sempre sabe.

“Eu tô desejante.”
“Tu é desejável.”
“Tu já foi mais sutil.”
“Já fui é?”

Me encolho no frio enquanto tu arrasta a cama contigo, o pouco dela que não faz companhia ao tapete. Não deixo tu dizer o que tu deseja, essas ansiedades que tu fica manuseando entre a aliança e tuas pulseiras. Não tem graça ficar imaginando o que tu pensa, eu sei que tu consegue me dar cem mil adjetivos num piscar de olhos. Mesmo sem ter favorito. Tuas costas sim, essas sim são dignas de serem favoritas de algo-alguém. De uma nação inteira. Cada pintinha, relevo, cada segredo guardado e arranhado. Aí tu te vira, me olha enquanto fecha a janela e já vai prevendo o frio ir embora.

“É tu já foi mais metido a poeta e menos grosso. Já foi até mais elegante. Já deu tchau como se fosse a declaração de amor mais linda do mundo. Já ficou em silêncio enquanto eu rugia por qualquer sinal de satisfação. Foi o ator mais brega e cafona do mundo. E fazia isso sem perder o jeito de monarca, de passista de escola de samba em pleno carnaval.”

“Só se for em quarta-feira de cinzas. Meu amor, eu não danço mais. Eu sei a Guanabara só de lembrança. Vai ver o que me falta é caminhar por aí. Viver no meio dessas coisas que só enfeitam teu mundo. É, eu devia caminhar mesmo por aí.”

“Cuidado pra não te apaixonar.”
“Logo tu me dizer isso!”

Não deixo tu terminar de voltar até a cama. Eu gosto de te interromper, de me colocar entre tu e o mundo. Nunca deixo de ser um estorvo, mesmo quando adorável. Vou puxando tua toga-lençol, teu chambre improvisado mais pra chamar tua atenção do que pra destapar teu corpo. No meio duma gargalhada tu entoa uma canção, um samba velho. Me olha do topo dos seios e os esconde como se fossem a grande novidade da praia. Cantando a gente pega no sono sorrindo. A coragem me assalta em fuga e acabo não te contando isso, mesmo sabendo que pra ti não é novidade. Daí vem a canção, baixinho. “Pra te deixar sorrir, uma onda pra olhar, da janela te sinto perfumes...”. O melhor é inventar o resto enquanto tu faz da música original teu próprio sonho.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O tanto que resta e o epitáfio ensaiado no meio da sala


Gosto pálido se conta em cada nota amassada. Duas de dois, uma de cinco. Seis ou sete goles vagando por entre os dentes, pérolas amarelas incluindo um canino de ouro. Um sorriso de vinho barato encaminhando-se até a luz mais favorecedora na sala. Antes o abajur do sofá ao lustre acanhado de lâmpadas. A janela aberta é a brisa do mar, o carpete áspero e a camisa jogada no chão são os aplausos gastos em rostos não familiares. Eu esfrego os olhos como se agarrasse com firmeza uma espécie de caneta capaz apenas de escrever a memória, embora a dor ardida e o pouco foco longe dos óculos, aninho entre o polegar e o indicador, sentinelas das pálpebras, pedaços do pouco que podia ser lembrado e o largo tanto que se fazia fantasia. Aí o suor vai brotando, poro por poro. Sem discriminação entre os fios brancos e os negros da barba. Pelo cabelo que um dia se escondeu debaixo de chapéus caros e hoje só existe em fotos em preto e branco. Preto como a pele, branco sem par.

As paredes vão perdendo os quadros, os relógios, as fotos obrigadas a celebrar a fama, fortuna e três quartos e meio de infortúnios disputados pelo valor de uma honra vencida. Não são mais paredes, aos poucos vão se transformando nas cordas seguras pelos quatro postes em cada corner. As mãos, incapazes de distinguir uma pera de um seio amado, vão sentindo o peso das luvas e do talco. Eu ergo a mão esquerda próximo ao rosto, deixo a direita um pouco afastada. Nem espelho nem ninguém, nem narrador, oponente, espectador velho ou criança deslumbrada com a violência jogada por cima de dois broncos, nem mesmo eu farejando meu próprio medo, consigo prever de onde parte o murro. A explosão de cada músculo dos quadris que empurra as costas, que empurra os omrbos, que empurra o antebraço, que empurra o braço, que faz doer o punho e mira o vazio do apartamento faz parar um instante no apartamento.

“Não era um ringue de boxe, era um palco, não eram boxeadores, eram atores conformados com um roteiro inacabado, tentando improvisar uma linha que deixasse um mais perto do refletor frio que o outro.” Balbucio enquanto a mão se vê com a garrafa ao invés da luva.

Mais quatro goles. Um para cada round perdido enquanto ainda acreditava ser possível sobreviver inventando uma ira em cada punho. As gavetas guardam remédios para hipertensão, diabetes, duas ou três cartelas clandestinas de algum calmante genérico. Elas guardam um lixo mundano e não guardam recortes de jornal ou medalhas, não lembram vitórias celebradas por muitos ou mesmo conversas de bar proferidas por estranhos convictos de toda minha história, meus melhores momentos e meu direto de esquerda, indefensável. Tenho gavetas pra me manter vivo sem ser lembrando ou celebrado.

Sala. Espelho. Pose de golpe vencedor e olhos ardidos de anos a mais vividos. Saio de cena devendo anos pra vida, devendo quatro letras e meia pra uma vírgula inteira sem nome, sem lugar na cama ou abraços reconciliadores. Sem prestígio, derrete-se as poucas medalhas pra moldar um dente de ouro, o único a não ser carcomido pelos goles baratos xingados do pior palavrão de todos: Tempo. Quando os punhos contam derrotas ao invés de segundos, lembra-se a todo instante do segundo lugar, do primeiro a perder, do único a não se perdoar. Entre dois goles e outros pares, fica o silêncio, um arranhar de agulha em vinil, em veia sem sangue, em boca sem palavra alguma no meio do frio, do trago barato e do que fica para o pouco que resta.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Primer Verbete

“La carta me he dejado despierta hasta las cinco. Empecé a leyer ella después de la cena.” Terminei amparando uma lágrima inexistente no rosto, embora él não pudesse me ver, o gesto me fazia um sentido que fugia sem rodeios. “Que vas hacer ahora?” A voz do outro lado não me vendeu nenhum interesse no que eu havia dito, “por favor, nena, vaya a dormir. Deja de tonterias.” E continuou. Não me passou pela cabeça pedir desculpa por tê-lo acordado. Não sabia se pedia desculpas pelo telefonema ou por toda uma outra sorte de casos.

Um bom minuto nos correu. A conversa emudecida ganhou o ponto de exclamação da minha persiana abrindo, o sol niño me ardeu bastante os olhos. Um pouco da noite ainda respingava pelo início de dia.

“Estás sola?”, a pergunta se repetiu duas ou três vezes, mas nunca num tom imperativo ou rancoroso. Eu queria travestir uma resposta verdadeira com uma mentira fácil. Enquanto sentava na poltrona, perto da janela, deixei o telefone ir escorrendo até cair sobre minha calcinha, que me espiava por entre as coxas cruzadas. Minhas pernas pareceram brancas demais e eu teria de comprar meias-calças novas... As minhas boas, velhas e usadas, estavam com rasgos e manchas sem cor de qualquer bobagem que eu não queria perceber. Minha mania de deixar os objetos contarem histórias que me fugiam nunca me pegava desprevinida.

Esperei o movimento na rua aumentar antes de pensar em sair de casa. Isso não aconteceu antes das sete. Andei distraída até Los Imperdoables, me sentei numa mesinha da rua e guardei os óculos escuros na bolsa, Gregório se espantou bastante em me ver por ali, me ofereceu logo um expresso – na conta da casa, é claro, na gentileza dele – e disse que não poderia sentar comigo pues que o movimento estava grande. O discurso não batia com o lugar vazio, mesmo assim, fiquei um pouco constrangida com a minha vontade egoísta de alugar a companhia dele no meio do trabalho.

Me apeguei ao café de tal maneira que o fui tomando com menos pressa que o usual. Pela metade da xícara já estava bastante frio. Gregório sorria quando passava, sempre elegante com a bandeja na linha do peito e um porte de um galgo-bêbado. Eu permanecia indiferente. Há vinte e quatro horas atrás havia encaminhado os papéis do divórcio. Mais do que isso, eu havia conseguido sumir sem ter de pegar um ônibus nem nada, de repente era fácil me esconder na multidão que caminhava, entre as pessoas almoçando, na praça cuidando os velhos e suas rotinas de exercícios, pela rua dos cabarés, fugindo de inúmeros olhares que me confundiam com alguma menina trabalhando. Que tolos, eu era mais barata.

Da madrugada até chegar ao café fora apenas um piscar de olhos, literalmente, pra pessoa certa, isso, talvez não. Não queria dormir, nem sentia a necessidade. Parecia uma tarefa débil e laboriosa demais, mesmo eu não tendo o hábito de pular o sono. Los Imperdoables não era só um café, era um ferrolho, uma zona desmilitarizada, uma bobagem gastronômica pretensiosa que acolhia toda espécie de tipos. Pelas manhãs, raramente um tipo como eu.

Gregório deixou um papel na minha mesa, disfarçando mais com traça do que com descrição. Era a comanda de um casal que havia sentado numa mesa ali perto. Eles tinham comido três medialunas e tomado um suco e um cappuccino. Enquanto não olhava o verso da comanda, fiquei achando que Gregório queria despertar meu apetite. Na parte de trás, com a péssima letra que tinha: Eu saio perto do meio-dia, vamos ao cinema? Responde na tua comanda. Besitos.

Me faltava a caneta, me sobrava vontade. Não saberia como me portar durante um filme, talvez fosse tomada por uma enxurrada de casos de amor mais baratos do que a entrada do cinema, prontos pra pular da minha boca para os ouvidos do Gregório. Talvez me jogassem na rua por gritar no meio do filme.

"Não é rude deixar um cavalheiro esperando?" Disse ao passar por mim equilibrando o desayuno de alguém.

"Pergunta como se não soubesse a resposta. Parece criança." Respondi apressada tentando vencer a rota dele até a cozinha apenas com o olhar. O sorriso bastava. Queria escrever a maior observação aforismática sobre o amor no verso da minha comanda, algo sucinto que desse conta da saudade revolta de uma trepada recheada de culpa, de algum carinho alienígena livre de impostos e cobranças. Das coisas que foram e já não são. Especialmente das que talvez nunca tenham sido.

Eu não tinha conhecimento de causa para isso tudo, ao mesmo tempo que esses delírios deixavam uma espécie de impressão digital na minha corrente sanguínea, cada um deles parecia desértico e distante. Aindassim, o sorriso bastava. E bastaria durante os noventa minutos de algum filme besta.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Como el cielo (repost mto antigo)


Quatro de Julho de 1987, quinze para as sete da noite.

Olhando e deitada no meu colo. Sangrando. Dois ferimentos de tiro, um no abdome e o outro no ombro. Nora podia perguntar se eu amava, se tudo ficaria bem, o que havia acontecido ou mesmo pedir perdão. Mas ao contrário disso, ela simplesmente sorriu para mim e rolou os olhos para o céu vermelho do fim de tarde, povoado nos cantos por pequenas nuvens brancas e ralas.

“Como el cielo.”

Preferia que tivesse perguntado se eu a amava, para então me dar conta de que certas perguntas, quando se está demais envolvido com o sentimento dos outros, merecem um mentira como resposta, ao passo que a verdade faria menos sentido que a mentira. Dizer pra ela que não a amava, ou meu silêncio quanto a isso, a fazia chorar por dentro através do mais doce sorriso, memórias como essa não paravam de explodir diante dos meus olhos.

“Estraño como los angeles... Y vos como um sueño”

Manejei dizer, de forma quase cantada perto do ouvido dela, enquanto a apertava contra meu peito e, com uma das mãos, tentava estancar um dos sangramentos, o do abdômen. Quando seus olhos cerraram e o sorriso foi perdendo pedaços do brilho, gritei para o céu e olhei para o inferno. Ironicamente no chão o forte azul dos néons refletidos em uma enorme poça d’água ao lado da de sangue. No céu ainda o vermelho encarnado do fim do dia.

Primeiro de Março de 1987, quatro e trinta e cinco da madrugada.

“Vamos fazer amor de novo...”
“Tu falando ‘fazer amor’?”
“Eu não acredito que tu vai implicar...”

Então as risadas gostosas e familiares, os sons característicos que construíam a nossa intimidade. Fazer amor só depois de transar inúmeras vezes com a mesma pessoa. Ou o contrário. Nunca nos decidíamos, nunca precisávamos, acho. Queria não dizer que a amava, e ela, de alguma forma, lutava para não me amar. Certa ela, ninguém nunca ganhou nada por me amar. Não chegava à pieguice de dizer que era um martírio se apaixonar por mim, mas, era algo repleto de... Arestas.

“Tu me ama?”
“Era dessa luminária que tu tava falando?”

Seguido de um cigarro ou um beijo, um gole d’água ou café.

“Já parou de chover... tão rápido.”
“Qual o problema.”
“Ah, eu gosto do jeito que eu fico quando tá chovendo.”
“Eu também.”

Talvez o mais apaixonante nela, tirando o lindo corpo, a pele macia, o espírito ácido e revoltado, com uma criancinha no fundo, era a habilidade dela de me dizer alguma coisa com qualquer outra coisa.

Oito de Abril de 1987, meio da tarde. Provavelmente cinco.

Queria chorar. Queria que ela fosse embora de alguma forma, queria nunca mais ver ela e que ela nunca tivesse aparecido na minha vida. Queria que ninguém nunca tivesse surgido na minha vida. E todas essas bobagens que a gente pensa quando está magoado com quem a gente ama.

“Então... Tchau, me liga mais tarde.”

Que poderia ser entendido muito mais como: “Eu te amo, não me deixa ir, me faz sentir qualquer outra coisa que não isso, por favor.”

Mas certamente ela não entenderia isso.

Sete de Julho de 1987. De manhã, bem cedo.

Ao pé da lápide uma rosa, feita de papel. Havia feito o que mais estava fazendo para completar meus dias há algumas semanas, encher a cara para poder aguentar o mundo. Não fazia muito sentido, mas, entorpecido, viver parecia doer menos. “Cada hora machuca, a última mata.” Quantas últimas ela queria viver? Quantas últimas eu tinha vivido até ali? Inúmeras, aquela era mais uma delas, com o diferencial de que se tornava mais triste por ser, realmente, a última vez que poderia lhe dar uma rosa de papel. Dizer que o amor é uma bobagem nossa e que tudo vai ficar bem, que ela podia contar comigo fosse o que fosse. Mas ela não me ouviria, como de costume também. Ao menos poderia ficar olhando para seu sorriso por muito tempo sem que ela perguntasse “O que houve?”. O que houve? O que houve é que te amo, infelizmente.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Trópico de ilha

Prometi a mim mesmo que não voltaria a te escrever. A pena balança na minha mão como um florete usado num crime. Sou o pior cumpridor das minhas promessas e ao meu redor, um par de anjos desocupados, não mais que isso, erguem um altar para celebrar o olhar patético que jogo por sobre o mundo. "Um feito janela de inverno, com neve e sujeira pra ser limpa depois." Tu dizia ao pé do meu ouvido, flertando com um bafo de cognac e um hino de meretriz preso aos dentes, quase canção, quase meio tom fora do lugar.


Bem como tu imagina, eu não me sento para escrever. Impaciente ou guloso, as letras do alfabeto me julgam de uma maneira mais branda que tu. Para mim isso é só a calmaria que vem com a maldita ressaca do mar. Os bons costumes e as verdades bordadas já não dizem tanto, "é só o vento", mas tu tava errada, era um fim sem começo implorando por um seguimento sem regras e pautas - ou mesmo pentagramas. Divina primavera essa que me floreia com severas melancolias sem âncora. É a vertigem desgarrada e a febre, uma doce impressão de que os segundos não passam, mas contaminam um ao outro.


Sim, é isso, o mundo pára e só tenho tempo para "esses" que andam de mãos dadas com a loucura, com uma fantasia amaldiçoada a nunca tanger o carnaval. A pena titubeia, não há frase que comece sem preferir o silêncio a própria existência. O perfume suado entre teus seios daria uma boa sinfonia. Essas bobagens com um rebusque jogado não te fazem bem, nem a mim. Segundo nossos beijos e carícias, também não fazemos. É uma ansiedade breve. E condenamos os poucos pares de lábios que temos a tudo isso.

O juízo entristecido da sobriedade bate a porta. O papel vence a pena esta noite. A saudade é carcereira dum sorriso atirado a derrota.