segunda-feira, 25 de julho de 2011

Senso Comum - Primeira Parte!




Um bom dia começa na banheira, não necessariamente às cinco da tarde, como hoje, mas, como é bom poder gozar desse prazer, a água morna, meu pau murcho, a breve pancinha de cerveja que eu teimo em empurrar pra dentro em ciclos pouco saudáveis de respiração. As duas aspirinas já começam a fazer efeito. Tomo elas com água do banho mesmo, tô nem aí. Eu finjo escutar o silêncio, mas presto atenção no som que vem da rua, a vizinha aburrida estacionando a porra do carro do marido, sempre arranhando ou encostando na parede da garagem.
“Uma hora dessas ela vai abrir a porta do carro na minha caminhonete.” Comento em voz baixa, só com o nariz e a boca para fora da água. Sorrio com o cinismo que me convém e já calculo o custo da chapeação ou martelinho de ouro.

Os sons vão parando e a água vai ficando cada vez mais presente.
“Aqui é o capitão Petit-gâteau. Estamos nos aproximando de uma profundidade de oitocentos metros. Posso dizer que o oceano é um lugar azul-escuro e bonito. Não há nada para se fazer em um submarino, o outro tripulante parece adormecido sobre um saco de bolas num ginásio velho. Já não há mais peixes para catalogar, só me resta a garrafa de gin que Gertrude me deu no porto de Franz-Statenport, uma colônia germânica no sul da África. Para constar a decepção lá não havia nada francês, ou alguém chamado Franz.”

Tateio pela garrafa de gin do lado de fora da banheira, empino-a num gole e me afogo ao afundar o nariz na água.
“Senhores tripulantes, aviso que a maldição da amante Alemã nos acompanha nessa expedição.”

Foi por isso que a gente se separou, não foi? Meu senso de humor de qualidade duvidosa, minha acuidade histórica e essa barba mal desenhada no rosto. Só pode ter sido. Não podem ter sido as brigas. Eu te vi brigar com outros caras. Eu te consolei – pra não dizer que te comi – quando tu tava meio baixo-astral e carente. Não pode ter sido pelas crianças, a gente nunca teve elas, e a que tu herdou do teu primeiro marido, “Que Deus o tenha”, fica depositada na casa da tua mãe acumulando juros para um futuro saque conveniente – tipo na festa de fim de ano da Firma, quando tu mostra que merece o aumento porque é mãe solteira e tudo mais.

“Tu foi embora porque...” Vou falando enquanto me levanto da banheira e espio pela janela que dá pra rua.

“Porque o filho da puta do cachorro da gorda tá virando todo meu lixo. Depois essa biscateira vem reclamar que minha calçada é um porqueira do cacete. Porra, que merda.” Tu também pode ter ido embora porque eu falo palavrão pra caralho. É, é possível, mas não é provável. Tu adorava falar palavrão também, no fundo eu fiquei sem entender porque mulher adora xingar enquanto tá trepando. Vai saber. E agora, perto dos quarenta, no posto de ex-marido, fico impossibilitado de saber. Aliás, quem souber pode largar no Twitter e fazer a alegria do pessoal. Que bela bosta.

Já no quarto eu separo uma camisa de botões, uma que tu implicava que era rosa e eu dizia que era um salmão escuro, distinto. Me sento na cama. Eu até penso em me masturbar, mas não te dou essa alegria, claro que, dadas as circunstâncias, eu acabaria pensando em ti e esse tesão que é a nostalgia. Não, o banho foi ótimo, a noite começou boa, não dá pra ir fazendo essas concessões, imagina se meu psiquiatra descobre? Pior ainda, imagina se o gerente do banco descobre? Em ambos os casos eu iria acabar ouvindo um sermão fodido, cheio de moralismo judaico-financeiro de maior conveniência.
“Oxalá meu pai!” Ainda tem um pouco de dignidade nesse corpinho. Vou falando, já de cueca, vencendo o limiar das primeiras peças de roupa.

“Coloco perfume?” Dilema exclusivamente masculino, visto que para a mulher, no nascimento de tal dúvida, a resposta é como um parasita que vem junto, e é sempre sim, muito perfume, o suficiente pra dar alergia ou proporcionar o adorável gosto de álcool quando o cara beijo o pescoço. Nice. Ligo a tevê e me deixo hipnotizar pelos gols da rodada. Sempre tem um pra reclamar que a religião é o ópio do povo. Porra, vai reclamar de impedimento mal marcado pra ver o que é o ópio do povo. No fundo, futebol e religião são mesma merda. Sempre tem um pagando demais pra quem não faz nada, fica lá, de mãozinha pra cima agitando a torcida, vai pra casa de carrão e fica olhando as dançarinas de programa da auditório como todo mundo. Não tem como levar isso a sério. E sempre tem um monte de gente discutindo nos programas de tevê, quem tem razão, porra, ninguém. Jogo é jogo. Missa é missa. O resultado dos dois a gente já sabe. O que muda é o que se comemora no fim do ano – seja um time diferente, ganhando o campeonato, ou um elenco diferente no presépio vivo.

E é claro que o spray do perfume me tira do transe, bem no meio do compacto do jogo do líder do campeonato. Eu dou uma cafungada embaixo do sovaco. “Não adianta, banho de banheira não limpa o cara direito.” Eu termino de me vestir. “Azar.”

Não que eu seja um boçal, mas se tu pudesse ler meus pensamentos, acho que tu nunca teria ido pra cama comigo. Quem sabe tu até tinha me beijado, aquela coisa, meio machão, barba na cara, homem maduro, tá assim só pra me impressionar. E ainda tem um trabalho digno, texto publicitário, deve ser culto. Daí tu vai lá e vê que eu sou assim o tempo todo. Abobado, às vezes grosso, impaciente, cheio de manias. Excepcionalmente comum.
“Porra, é isso, é por isso que tu foi embora.”

É. Não. Se eu fosse um gentleman tu ia me achar muito chato. Muito almofadinha. Mas eu tenho meus momentos de dúvida, sabe? Eu to de calça social, mas não sei se coloco sapato ou o meu all-star. Eu realmente não quero parecer ridículo... Só que, pô, eu já to com trinta e oito, uma hora a gente cansa, assume a caretice e continua vivendo numa boa. Paga IPTU. Não leva multa de trânsito e ganha desconto no IPVA, não anda mais com dinheiro na carteira, só com cartão de crédito. Até na fila do caixa do supermercado tento aquela piadinha que tu detesta: Tenho mais cartões aqui que cartas no baralho.

Daí eu dou uma risada honesta, a mocinha que não tem culpa de nada deixa escapar uma risada protocolar e olha pra ti com aquela cara de “como tu consegue dar pra esse idiota, só pode ser bom de cama”. É, daí tu vê que ela faz aquele sorrisinho de quem pensou putaria e vai lá e me tasca um beijo ou aperta minha bunda, marca o território, só pra eu parar de olhar pra porcaria da menina atrás do caixa. Funciona. Sempre. E claro que o empacotador, um desses cheios de espinhas na cara e unhas sujas, fica olhando tudo sem saber muito bem se ri, se olha pro teu decote, se empacota mais rápido as nossas compras, acreditando com uma fé de final de copa do mundo que eu vou dar uma de turista e dar uma gorjeta pra ele. Não. Essa aí não funciona. Quase nunca.

Eu coloco a porcaria do all-star. “Seja o que Deus quisar.” Faço um rápido sinal da cruz e deixo a porta bater atrás de mim.


(continua em breve, acompanhe!)