domingo, 6 de junho de 2010

Como se fosse cereja


Jezebel senta no tapete, tira um pouco do esmalte das unhas dos pés e, com algum zelo, ajeita o vestido rodeando o chão. Brinca com a barra por sobra as coxas, bastante brancas e um pouco marcadas pela meia-calça fininha. "... un diablo viejo y borracho..." As palavras quase caem da boca. Joelhos contra os seios, praços cruzados na frente dos joelhos, queixo apoiado nos braços. Jezebel não dá bola pra alça da blusa caída, nem pro bico do peito transbordando o decote. "... Lejos. Que hemos intentado ayer?". O choro vem e faz coro com o pouco de chuva que teima pela fresta da janela.


Ela sorri como se fizesse um bom grado para aquele pranto fora do lugar. Bem como havia prometido fazer se não conseguisse pensar em outra coisa. O olhar atrás do rímel vai minguando, finge uma fase de lua e fica mais claro por causa do néon do motel na frente do prédio. O Martini seco nos lábios soa como um batom passado às pressas, sem intenção de tocar outra boca, apenas de deixar a pele branca com um aspecto mais saudável, menos enclausurada entre um minuto e outro.


O abajur com pedestal baixo trata de banhar toda a sala com uma luz levemente avermelhada, culpa da lanterna chinesa, fácil de digerir e de ignorar. Uma luz que se mescla com o marrom dos móveis, das molduras das fotos, das gavetas desarrumadas, cheias de coisas chatas pra serem lembradas, fotografadas, letradas, pagas, enclausuradas, contadas, ordenadas e condenadas a verbos que pouco lhe dizem respeito.


O silêncio é impecável, se entranha no canto do olhar e vai esmaecendo por debaixo das portas e pela ventana aberta. "¿No me vas a coger?" O tiritar dos pingos que ficavam no vidro começaram a fazer coro com as unhas da gata tipitando o parquet do apartamento. As fotos no alto da cristaleira ficam soando como um inquilino que não paga aluguel, ainda por cima, desaforado. Hóspede ingrato. Cada foto ali pode juntar suas malas e dar o fora, sem olhar pra trás, sem brincar de resquícios. Jezebel, condena as fotos enquanto arranca pequenas tiras de papel de parede, elas rasgam com facilidade e revelam o reboco velho e rugoso, feito com bastante preguiça.


No centro da sala, os móveis velam um cavalete solitário que segura uma tela quase em branco, marcada apenas por uns teste de tinta em uma das bordas, tons cianos e alguns avermelhados, quase uma paleta de pôr-do-sol infantil. Cinzas de cigarro também se misturam no pigmento. As cortinas roxas dançam um balé imaginário, coreografias sincronizadas de cada lado de uma janela aberta e chorosa. Balançam em uma mistura de ritmos frenéticos e suaves, tocando o chão e o teto, por vezes os dois ao mesmo tempo. Até se sentar ali no chão, Jezebel nunca se dera conta de como havia sentido falta de dançar um balé assim, como jamais quisera, mas, sempre sentira falta.


Os sentidos entorpecidos ajudam o olhar de Jezebel a se perder pelo teto, como faz a gata, sentada não muito longe. O jacquard felpudo da cortina derruba um dos potinhos de tinta, e ela escorre pelo chão até tocar os dedos do pé de Jezebel, que se encolhe rápidamente, num susto, prensando os joelhos ainda mais contra os seios.


Sem muito jeito, Jezebel desenha seu nome na tinta escorrida no chão, olha pra janela e junta o dedo sujo aos lábios, faz um nobre sinal de silêncio.


Shhh.


Parada na frente do quadro, ainda com a alça do vestido caída, suja de tinta por onde a pele se mostra, e os dedos e as unhas do pé esquerdo manchadas de preto. Jezebel, sem hesitar, abraça a tela e cola a bochecha nela tentando esquentá-la da forma mais materna possível. Do lado de fora cessam os ventos e os pingos pesados agora viram uma danças de riscos leves que pairam no ar. No tornozelo de Jezebel, uma tornozeleira de corrente fininha, nela, a palavra cereja.


Longe. Do outro lado da porta que dá para o corredor. Um punho fechado bate na porta. A voz baixa. "Sou eu."


Mais uma vez.

"Sou eu, Jezebel."


O silencio, agora, mais uma vez, repousa sobre todos os objetos como um lençol jogado com desdém sobre uma poltrona feia tentando escondê-la.


Jezebel vai até a porta e espia pelo olho-mágico, sem encanto, sorri para si mesma e limpa o dedo sujo de tinta na blusa e na saia.


“Surpresa. Eu voltei” diz a pessoa do outro lado, pingando e embrulhado em uma jaqueta de couro.

"Eu não vou abrir."


Sentada no chão ela brinca com a tornozeleira. Dá as costas para a porta. Do outro lado a pessoa escorrega pela porta e senta de costas também. O barulho do isqueiro chama atenção de Jezebel, o cheiro do cigarro invade a porta sem um convite formal.


“Não gosto quando tu fuma”, dito com simplicidade, beirando um miado.


“Só fumo quando estou triste, quando tenho saudade” intercalando uma frase com uma tragada de cigarro.

A resposta da pessoa do lado de fora do apartamento de Jezebel vem com pouco caso e sem pressa.

Jezebel sorri misturando o resto de tinta no dedo com o rímel do olho, um tentativa besta de amparar uma lágrima que não estava ali. Ela segue. "Achei que já tinha te dado tchau hoje."


"Já deu."

"Dei sim."


Aí a pausa tragada pelo cigarro e pela garganta ardida de Jezebel do outro lado da porta, pensando no que dizer. "Quando eu tô sozinha eu falo em castellano."


"Eu sei."

"Como?"

"A gata me contou."

"Acho que gosto de ti."

"Acha? Quando vai saber?"

"Quando o frio desaparecer... lembra?"



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