quarta-feira, 25 de maio de 2011

O tanto que resta e o epitáfio ensaiado no meio da sala


Gosto pálido se conta em cada nota amassada. Duas de dois, uma de cinco. Seis ou sete goles vagando por entre os dentes, pérolas amarelas incluindo um canino de ouro. Um sorriso de vinho barato encaminhando-se até a luz mais favorecedora na sala. Antes o abajur do sofá ao lustre acanhado de lâmpadas. A janela aberta é a brisa do mar, o carpete áspero e a camisa jogada no chão são os aplausos gastos em rostos não familiares. Eu esfrego os olhos como se agarrasse com firmeza uma espécie de caneta capaz apenas de escrever a memória, embora a dor ardida e o pouco foco longe dos óculos, aninho entre o polegar e o indicador, sentinelas das pálpebras, pedaços do pouco que podia ser lembrado e o largo tanto que se fazia fantasia. Aí o suor vai brotando, poro por poro. Sem discriminação entre os fios brancos e os negros da barba. Pelo cabelo que um dia se escondeu debaixo de chapéus caros e hoje só existe em fotos em preto e branco. Preto como a pele, branco sem par.

As paredes vão perdendo os quadros, os relógios, as fotos obrigadas a celebrar a fama, fortuna e três quartos e meio de infortúnios disputados pelo valor de uma honra vencida. Não são mais paredes, aos poucos vão se transformando nas cordas seguras pelos quatro postes em cada corner. As mãos, incapazes de distinguir uma pera de um seio amado, vão sentindo o peso das luvas e do talco. Eu ergo a mão esquerda próximo ao rosto, deixo a direita um pouco afastada. Nem espelho nem ninguém, nem narrador, oponente, espectador velho ou criança deslumbrada com a violência jogada por cima de dois broncos, nem mesmo eu farejando meu próprio medo, consigo prever de onde parte o murro. A explosão de cada músculo dos quadris que empurra as costas, que empurra os omrbos, que empurra o antebraço, que empurra o braço, que faz doer o punho e mira o vazio do apartamento faz parar um instante no apartamento.

“Não era um ringue de boxe, era um palco, não eram boxeadores, eram atores conformados com um roteiro inacabado, tentando improvisar uma linha que deixasse um mais perto do refletor frio que o outro.” Balbucio enquanto a mão se vê com a garrafa ao invés da luva.

Mais quatro goles. Um para cada round perdido enquanto ainda acreditava ser possível sobreviver inventando uma ira em cada punho. As gavetas guardam remédios para hipertensão, diabetes, duas ou três cartelas clandestinas de algum calmante genérico. Elas guardam um lixo mundano e não guardam recortes de jornal ou medalhas, não lembram vitórias celebradas por muitos ou mesmo conversas de bar proferidas por estranhos convictos de toda minha história, meus melhores momentos e meu direto de esquerda, indefensável. Tenho gavetas pra me manter vivo sem ser lembrando ou celebrado.

Sala. Espelho. Pose de golpe vencedor e olhos ardidos de anos a mais vividos. Saio de cena devendo anos pra vida, devendo quatro letras e meia pra uma vírgula inteira sem nome, sem lugar na cama ou abraços reconciliadores. Sem prestígio, derrete-se as poucas medalhas pra moldar um dente de ouro, o único a não ser carcomido pelos goles baratos xingados do pior palavrão de todos: Tempo. Quando os punhos contam derrotas ao invés de segundos, lembra-se a todo instante do segundo lugar, do primeiro a perder, do único a não se perdoar. Entre dois goles e outros pares, fica o silêncio, um arranhar de agulha em vinil, em veia sem sangue, em boca sem palavra alguma no meio do frio, do trago barato e do que fica para o pouco que resta.