quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A vida dos outros



“Oi, queria te dar boa noite. Acho que já vou estar dormindo quando tu chegar em casa, me liga se tu puder, ainda vou ficar acordada mais um tempo. Beijo. Te amo.”


Os livros jogados no chão dão um tom diferente para o sempre arrumado apartamento de Marcela. O vento balança as chamas de um par de velas acesas por acaso na sala. A luz esverdeada, oriunda da geladeira aberta na cozinha, se junta ao alaranjado das velas. Coçando a nuca, de maneira bastante feminina, Marcela esquece o telefone fora do gancho e fica pensando no marido. Deita no sofá e coloca as pernas pra cima. Fica mordendo a ponta dos dedos e encarando a noite pela janela. Do alto, a lua encara de volta, com um olhar de piedade, seu movimento lento de cruzar o céu é quase como uma sinfonia de lamento, pelo menos é o que Marcela acha.


Na frente de uma orquestra, Michel gesticula e comunica um sermão quase religioso e duro, sem dizer sequer uma só palavra. Uma menina, vestida de verde e empunhando um violino, faz cara de choro, mas, toca as cordas com o arco e morde o lábio de forma sutil e indecisa, observando atentamente as instruções de Michel, seguindo os movimentos dele com seu rosto. Ela dá leves beliscões nas cordas com o arco. Os sons começam a se dar as mãos, então, as notas do violino se juntam com as dos outros instrumentos, e quando a garota começa a esboçar um sorriso e confiar em seus movimentos, o maestro inicia um novo discurso ditatorial silencioso, munido de olhares perversos e tristes.


Agarrando cada fio de um silêncio praticamente palpável, André solta sua flauta e tenta tocar a mão da violinista, mas, ela recua em um movimento rápido e arisco, sem tirar os olhos do maestro mais a frente. Ele não insiste, não sabe se olha para a própria mão, para a flauta ou para o violino. Com uma voz baixa e discreta, ele fala:


“Escuta, Diana, não dá bola pra ele... Tu sabe que estava perfeita.”


Diana, passando uma nova camada de breu no arco, parece não ouvir seu colega e mantém o olhar sob algumas pequenas mechas do cabelo branco de Michel, que, depois de um longo silêncio, dá algumas instruções verbais para os músicos mais à sua frente. Ele faz isso mesclando olhares com ela e com um enorme quadro ao fundo da sala de ensaio. O quadro mostra uma violinista tocando com um homem desfocado ao fundo. Diana sempre evita olhar para aquele quadro, ele a lembra de que, se não fosse por Michel, ela jamais estaria ali. Que tudo dependia de um amor errado. Um amor vermelho, com manchas de nojo e ódio ao longo de si. O ensaio começa mais uma vez, o suor percorre todo corpo de Diana.


Em um bar, Rosa declama um poema sobre amores tórridos, sombrios e ébrios. Sobre casais jovens, corpos bem vestidos e bocas se tocando. Sons ecoantes e metáforas florais sobre tudo isso. Ela fala de mundos em tom sépia e vestígios de uma paixão recheada de soberba e habitante de uma realidade de fábulas adultas. Rosa cora. A boca dela treme e, em uma mesa ao fundo, Catarina se toca por baixo da saia enquanto ouve o sabor preto e branco das palavras de Rosa. O poema termina com uma ode de três linhas sobre um flautista, lânguido, carnal e amante. Esta é a deixa para que caiam algumas lágrimas pelo rosto de Catarina.


Também é a deixa para um novo poema.


No conservatório, o ensaio termina e André perde Diana de vista no meio dos outros músicos. Decide esperar por ela na frente de seu carro, oferecer uma carona, quem sabe, falar sobre algo interessante, ganhar o afeto dela aos poucos, mostrar que ele é bonito e legal. Além de um exímio flautista. Mas não. Ela não aparece – contrariando o palpite dele –, e as pessoas que passam não parecem interessadas em saber onde ela se encontra. Entre esperar mais e ir embora, o coração partido opta pela ida até qualquer outro lugar, distante do Conservatório Musical. Longe de Diana.


André sempre achou uísque um ótimo anestésico, seja lá para o que fosse. O barulho e o frio da noite eram convidativos a isso.


O som do motor faz coro com suas frustrações ordinárias. E bem como a violinista, o local dos ensaios vai ficando para trás conforme o carro desliza pelas ruas. Na primeira sinaleira, André pega um anel no porta-luvas e coloca no dedo anelar da mão direita. Um compromisso com intervalos marcados, guardado com desdém no carro vez que outra. Atrapalha para tocar, ele fica dizendo para si mesmo, tentando se convencer sem sucesso. Ele dá uma rápida risada olhando para o anel e passa a mão no cabelo. Tenta se concentrar no trânsito e em descobrir se está com saudade da namorada.


Na sala de ensaios, uma clarabóia trata de banhar tudo ali com a luz da lua, lá dentro Diana abre os botões de sua blusa, solta o sutiã e arranha a lateral de sua barriga com suas unhas vermelhas e compridas. Ela deita no chão e faz uma cara séria. Michel a puxa para seu colo e beija-lhe o umbigo. Diana tenta beijar o maestro, mas ele vira o rosto e fica esfregando sua barba no pescoço dela, enquanto isso alisa sua coxa com uma de suas mãos. A coragem lhe falha ao se deixar gemer, não consegue acreditar que se sente bem com aquilo. Michel respira fundo e não fecha os olhos em momento algum. Entre a sujeira e o amor, Diana sorri.


No sofá de seu apartamento, ainda deitada, Marcela fica se sentindo velha. Vê as raízes crescidas no cabelo pintado, os seios flácidos caídos no vestido frouxo. Ela levanta e anda de um lado para o outro, não entende por que se sente ansiosa e angustiada. Se fumasse, seria um ótimo momento para fumar. Algo a mantém acordada, é difícil dormir sem Michel do seu lado na cama. Sem ele, o silêncio sempre parece maior e mais desconfortável. Pesado e áspero. Marcela não quer deixar outro recado para ele, mas, seus dedos sempre buscam o número do telefone dele nas teclas do aparelho. Um pingo de razão a faz desligar antes mesmo do primeiro toque.


Catarina rabisca o próprio nome em uma carteira de cigarros aberta e vazia. Desenha corações e notas musicais sem pauta. Escreve pequenas frases em alemão e francês. Esboça um sorriso enquanto faz isso. No palco, Rosa termina mais um poema e se excita com cada aplauso das pessoas ali presentes. Ela brilha em seu vestido prateado e se embebeda do amor nos olhos das pessoas que ela provoca, com seus poemas, com sua voz doce. Com seus olhares carinhosos. Na mesa do fundo, Catarina fala o nome de Rosa baixinho, sentindo um enorme ciúme das pessoas olhando ela. Em uma breve ilusão, Catarina vê Rosa chamar pelo seu nome, lhe faz lembrar de como chama seu gato de estimação perto das lixeiras, no meio da noite.


O frio aumenta. Michel tenta vestir a roupa enquanto Diana se abraça em sua perna. O chão gelado tem o cheiro deles e algumas partituras amassadas. Bastante pó e roupas amassadas. Ele beija os lábios dela e diz que tem de ir embora e que ela tem uma vida além daquilo ali, mesmo que ela não acredite.


“Preciso ir, e não, não me olha como se eu fosse me sentir culpado por você ou por minha mulher. Muito menos pelo que digo ou faço.” Diz ele, seco, sem olhar ela.


Enquanto os carros andam, André mergulha dentro da própria paranóia, leve e despreocupada. Não quer ir até o bar onde está sua namorada, mas, nenhum outro lhe apetece. Algo lhe diz que não é um bom momento para ver Rosa. Não tem coragem de contar que ama outra pessoa, mas, também não tem coragem de se entregar a ela de uma maneira completa, fica dividido e constrangido. Sabe que é um sentimento que não tem volta e que vai tornando ele cada vez mais vazio. De um lado, um amor não correspondido, de outro, um amor não aproveitado. No dedo, o anel “aliança” de André gira impaciente a cada parada do trânsito.


Catarina vai até o banheiro, para lavar as manchas de tinta da caneta dos braços, aproveita para jogar água na cara e, quando tira as mãos do rosto, percebe que Rosa está olhando ela de perto da porta. Como se fosse uma foto, ela fica paralisada. Rosa sorri, passeia ao redor da menina na pia como faria uma gata aristocrata, cheia de pompa. Passa as mãos nos cabelos e na franja molhada de Catarina e se apóia na parede enquanto leva a mão ao isqueiro. A outra logo fala.


“Eu amei teus poemas... Eu. Eu acho que... Eles são bons sabe? Claro que tu sabe...”


Rosa dá uma leve risada e guarda o isqueiro, fica olhando todas as partes do corpo da linda menina encabulada ali com ela. Arruma a franja atrás da orelha e os óculos no topo do nariz. Ela desliza as mãos pelos braços e dá alguns passos bastante lentos. Chega próximo ao ouvido de Catarina e fala enquanto toca a orelha dela com o lábio, quase sem querer.


“Esse teu jeito tímido. Essa tua voz parecendo um miado. Gatos, aposto que tu tem gato em casa, não parece alguém que gosta de cachorros. Que linda essa tua franja de menininha. Cuidado, bonitinha, tem muita gente mal intencionada por aqui. Se eu fosse tu, ficava com os olhos bem abertos...”


Rosa dá um beijo na bochecha de Catarina e sai triunfante do banheiro. A porta se fecha e a “bonitinha” fica parada, sem saber o que pensar, sentir ou fazer. Do outro lado da porta, Rosa atende uma ligação de André.


As fortes dores de cabeça perturbam Marcela. Ela fecha a porta atrás de si e desce degrau por degrau a escada, decidida a ir até a farmácia comprar umas aspirinas. Ela não gosta de tomar remédios, por isso nunca os tem em casa. Michel tem os dele, sempre toma alguns comprimidos antes de dormir, depois de acordar, antes de comer, depois de sair para o trabalho. Marcela não conhece nenhum deles, o marido não conta para o que servem. Austero como só ele sabe ser, vive fazendo caras de poucos amigos quando sua mulher toca no assunto.


A farmácia é perto, quase na esquina, o movimento da rua é pouco, por causa da hora já tardia. Marcela entra e fica procurando a gôndola dos analgésicos, ela não é familiar com a disposição das coisas ali, raramente tem de ir até a farmácia, mas, tenta se divertir com isso. Ela fica um pouco vermelha ao ver uma menina comprando alguns pacotes de camisinha, do fundo ouve uma voz masculina.


“Anda, Rosa, to estacionado em fila dupla...”


Rosa sorri para Marcela e lhe atira um beijinho enquanto pisca com o olho esquerdo, faz isso desviando de algumas pilhas de produtos e olhando por cima do ombro.

André a espera na porta e lhe dá um beijo bastante carinhoso. Ele olha para Marcela e tem a impressão de já ter visto ela em algum lugar, mas, não dá muita bola para isso, já está ocupado demais em tirar Diana de sua cabeça enquanto Rosa se acolhe em seus braços.


Michel termina de fumar um cigarro dentro do carro, na frente de seu prédio. Sabe que Marcela odeia o cheiro da fumaça e da nicotina, mas, melhor isso do que o perfume adocicado de Diana. Certamente Marcela ia estranhar aquele cheiro doce, levemente cítrico, mas, essencialmente feminino. Ele teria de dar alguma explicação furada, apesar de ser um marido infiel, Michel odeia mentiras. Odeia ter de mentir. O cigarro não precisaria de mentira alguma. Tinha algo de verdadeiro na desculpa que ele preparava. “Estava deprimido, resolvi fumar um cigarro. Achei que ia ajudar, mas, estava enganado, ultimamente tenho estado enganado sobre muitas coisas.” Ele ia ser evasivo e dizer que tem achado ela fria e distante. Ninguém ia chegar a lugar algum. Iriam dar um beijo rápido, e então, dentro da cabeça deles, iriam acreditar que tudo está bem.


O vento gela mais a noite. Um ônibus dobra a esquina, Diana sobe e ignora o olhar malicioso do cobrador. Ela detesta pegar o último ônibus da noite, detesta deixar a mãe dela preocupada esperando, sem saber se a filha está bem. Ela fica pensando que a mãe teria um infarto se soubesse que o motivo dos atrasos é um affair com um homem mais velho e casado. O ônibus está vazio e ela resolve sentar no fundo, na parte mais alta, mais escondida. Diana cola o rosto na janela e fica admirando as luzes, sentindo o cheiro forte de Michel ainda no seu corpo e na sua roupa. Ela manda uma mensagem para ele pelo celular. “Te amo”, diz a mensagem. Algum tempo depois, ela recebe uma resposta. “Algumas vezes por semana eu também te amo. Mas nada faz esquecer que eu amo minha mulher também.” Diana canta uma canção, enquanto embaça o vidro com sua respiração curta.


O quarto de André é bastante escuro, os letreiros eletrônicos da cidade iluminam tristemente a cama e algumas roupas jogadas por ali. Rosa veste sua calcinha e beija o peito de André, lhe deseja boa noite e se espalha na cama junto dele. O barulho da televisão do vizinho incomoda.


André fica pensando em Diana, na sua pele fria e pálida. Ele fica formando as letras do nome dela com sua boca, sem emitir nenhum som. De alguma forma, gostaria que ela estivesse ali no lugar de Rosa. André se levanta, rabisca algo na parede com batom e volta para cama. Levanta, apaga o que escreveu e abraça Rosa.

No vizinho, a televisão continua soando alto, algum canal pago de esportes, é comum as pessoas deixarem o aparelho de tevê ligado para espantar qualquer sinal de solidão. Ou mesmo ladrões afortunados.


Catarina é a última a sair do bar. O dono tem de avisar ela de que não há mais nada ali, que até a cerveja acabara cerca de meia hora atrás. Com um sorriso simpático, ela diz que não tem para onde ir, o dono do bar, um senhor careca, gordo e de bigode, sorri e dá as costas enquanto acena com uma das mãos. A garota sai, dá passos bêbados e senta no chão de uma esquina, fica cantarolando uma canção de amor antiga e ingênua. Ela tenta permanecer acordada, alguns homens passam do outro lado da rua, mas, não a notam. Catarina não se importa com isso, fica pensando que teve uma boa noite, alisa a bochecha que Rosa beijou, de uma maneira muito tenra, com as costas da mão. Ela fecha os olhos escorrega até o chão.


Michel se surpreende ao encontrar o apartamento vazio. Fica sentado na cama olhando pela janela. Coça a barba vez que outra e boceja algumas vezes. Estranhamente o sono vai embora. Mesmo cansado, dormir parece uma tarefa complicada. Marcela sobe as escadas, fica mastigando um par de comprimidos e coloca a chave na porta. Entra, bebe água na cozinha e joga a bolsa no sofá. Ela sorri ao ver Michel acordado na cama e se deita do lado dele. Beija as mãos do marido e diz que o ama. Michel vira para o lado e dá boa noite. Marcela sorri e abraça seu marido.

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