sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Descuidos (Repost)


Ela vestia uma saia xadrez de algodão. Era linda, verde-escura, com umas linhas vermelhas e de um roxo bem leve. O corpo estava um pouco descoberto, o sutiã e o sobretudo pretos contrastavam bem com a pele braca e tímida. Talvez fosse dona de uma nudez intimidadora, mas isso ainda não era um problema. O olhar sim, curioso e vivo, pousava como uma questão sem grande resposta. Não era algo que chegava a me incomodar, mas ela perdeu um longo tempo me olhando. Foi se estatelando devagar no sofá e lá ficou. Me impressionava o fato de ela não parecer exigir uma retribuição, era um olhar ofertado, gratuito no sentido mais bonito da palavra. Por um instante quase deixei meu copo de uísque escapar da ponta dos dedos balançando perto da coxa. Seria um pequeno desastre, mas, foi prontamente evitado. Num movimento quase involuntário, levei o copo até os lábios, não com a intenção de tomar, mas, simplesmente de queimar um pouco a boca para me manter acordado, calado também, talvez. Ela me arremessou um sorriso junto com o olhar. "Bom trabalho, campeão." Se inscrevia entre os cílios.

Do outro lado da sala, Daniel, absorto nos seus cigarros, colocou um disco no prato, Ely abriu os olhos por um longo momento e acompanhou o movimento do braço até o disco de vinyl, então tornou a fechar os olhos. A menina de saia pendeu a cabeça por sobre o apoio do sofá. Tinha um pescoço magnífico, mas, magnífico, era a pior palavra para descrevê-lo, foi algo que me tomou de assalto, era pictórico demais, aquele pescoço caído, se expondo como se estivesse querendo dizer algo de relevante pro mundo, bobagem minha. Enquanto vencia a batalha contra o sono, senti um peso crescendo no peito, algo que não era novo, mas tinha um gosto de lembrança, algo semelhante ao carvalho do uísque. Meu coração não batia mais rápido, nem em um compasso quebrado, simplesmente se fazia perceptível, quase palpável por entre a minha camisa e os pelos do peito. Tentei buscar nos olhos dos outros algum coro com o que eu sentia, em vão, embora uma tentativa honesta.

Por outro lado, era terrível da minha parte me intrometer no transe deles. Era como se cada um ali na sala esperasse por alguma coisa. Daniel esperava atento, ignorando seu cigarro, os trompetes de Alex Chion, que começavam tímidos e iam crescendo até se transformarem em frenéticos e espontâneos golpes no instrumento. Ely certamente preferia o silêncio, ou alguma forma interessante vista pela janela, algo que ele pudesse transferir para algum poema irritante e comovente. Ana esperava sua libido lhe dominar, algo que sempre aguardava, mas nunca acontecia, preferia esconder-se atrás da franja e da leve carícia por sobre os seios, que, por sinal, quase ninguém percebia. O mais intrigante era a menina da saia de algodão. Ela era uma peça fora do lugar ali. Eu não fazia idéia do que ela estava esperando, mas tinha certeza que aguardava por algo, afinal, estava ali no meio de nós. Eu freqüentava a casa do Dani há uns seis anos, mas nunca tivera visto ela ali antes.

Ela Conversava com as pessoas quase que de forma aleatória, oferecia um “que” de bossa nova como pagamento pela atenção dada. Contudo, ali era o seu silêncio que mais chamava minha atenção. Entre os trompetes exaustos, um ritmo quebrado e lerdo amansando no piano, tudo arranhado pelo disco, nos demos conta de que os assuntos tinham partido, já estávamos quietos num gesto em coro com a música. Ninguém se mexia, apenas o ar passava por nós, e, enquanto aquele encanto se aninhava ali, cada um pareceu acreditar que éramos apenas uma fantasia coletiva das consciências por ali, uma brincadeira da imaginação. Algo que beirava um passeio lúdico pela memória, de certa forma dolorido e inevitável.

Se alguém estranho a nós entrasse lá, poderia acreditar que não passávamos de uma instalação de arte contemporânea, uma dessas de difícil leitura, mas muitos significados. Cada uma daquelas paredes podia se mover a qualquer momento, até o tilitar da chuva que começava, de alguma forma, ameaçava quebrar aquela inércia saborosa que nos compunha ali. Podíamos sentir uma espécie de aroma de destino no ar, cada um aguardava a sentença do próximo movimento sem muita curiosidade. Um bando de resignados. Imersos, imersos e inundados na recordação do presente, na tragédia que é regredir ao agora. Um presente contaminado pela despedaçamento de cada um. Não eram mais cinco pessoas, éramos os pedaços de cada um invadindo o espaço um do outro. Até que o disco de jazz pulou para o próximo vinco, que nos levou pra próxima faixa, acentuada pelo raio que cruzava a janela sem ser aparentemente convidado. O silêncio arranhado pela agulha do disco fez reverência e se retirou.

“Aonde vais?... Aonde vais?” Nos resgatou Ely, contemplando a própria mão e um terço do meu rosto por entre os dedos, inferindo que minha troca de peso de uma perna pra outra, meu leve movimento de quadril, queria dizer muito mais do que eu imaginava. Estava cansado, podia imaginar a vida continuando num ritmo de domingo, do lado de fora, embora a noite já estivesse entregue a nós, pouco ainda sobrava pra mim, como se só um número limitado de palavras pudessem ser ditas por dia. Desconcertado, admirando cada um voltando de seu vôo solo, disse que todo aquele tempo parecia ter nos tomado apenas um par de segundos. “Um par sem par.” Sorri um bocado constrangido. A frase era pipocou boba na minha cabeça e escapou por entre os dentes.

A menina da saia verde me encarou, voltando o pescoço caído num movimento brusco. Sorriu com uma cara de travessura infantil, sugeriu com algumas batidas de mão no sofá que eu sentasse ao seu lado. Enquanto caminhava, Daniel me atirou um cigarro e ofereceu o fogo. Ana se deitou no sofá com a cabeça no colo da menina de saia verde, bem entre as coxas e a saia. Meu lugar havia sido tomado de forma tão doce e adorável, que nada podia fazer. Terminei de acender o cigarro e levei o copo de uísque, agora já quase água pura, até a boca, desta vez obstinado e destemido, pronto para acabar com aquela água suja que tinha se tornado a minha bebida. Me assustei de princípio com o gosto fraco e morto, mas, tão cedo aquele líquido amadeirado tocou minha língua, me dei conta de que já estava um pouco bêbado há horas. Tentei disfarçar com o olhar de que, aquilo ali, se tratava da melhor bebida do mundo, tentando despertar o desejo dos outros. Mas não era uma bebida interessante, de forma alguma. Parecia café em copo de suco mal lavado.

“Eu...”

Então, Ely se moveu pro lado, me oferecendo um lugar no chão, junto ao sofá, entre a cabeça de Ana e as coxas da menina de saia. Terminei de me sentar num movimento longuíssimo. “Parecia uma nave alienígena aterrissando!” Comentou com uma estranha euforia, Daniel, para logo depois voltar a olhar para o disco no prato, girando, girando e para a chuva fina entrando pela janela. As risadas dos outros pareciam ter um reverb ilógico, e, antes que eu pudesse formular qualquer tipo de frase, um sorriso me arrebatou e me deteve num longo farfalhar de dedos pelo meu cabelo. Parecia ter uma lona de circo ao redor da sala, aquele quase picadeiro era o lugar perfeito pra perder qualquer sentido de vista. Eram apenas os dedos dela correndo pelo me cabelo, sem pressa, sem atraso.
Nenhum de nós cinco precisava partir, ou tinha uma rotina para dar bom dia quando a manhã surgisse. A grande expectativa era pelo futuro do próximo disco a deitar no prato, nada muito mais longe ou formal do que isso. Talvez fosse mesquinho de nossa parte, ou mesmo imaturo não nos preocuparmos com a fome, a morte e a peste fugindo das páginas de algum livro velho, batendo na porta das pessoas. Não parecia ser a nossa história, não nos pertencia. Não nos interessava. Só o presente nos dizia alguma coisa. Todos éramos lindos dentro dos nossos pequenos espelhos repartidos, e o ar quente da nicotina era a refeição rápida que parecia mais apetitosa. Assim, e quase todos os dias.

“... é como se a gente pudesse masturbar o silêncio um do outro.” Ely falou e levantou as mãos até se cruzarem atrás do pescoço, na mais digna pose de alguém esperando alguma sorte de prazer oral, mesmo que fosse apenas a validação do que ele havia dito, qualquer bando de palavras travestidas de um sentido ligeiramente fora do comum, o suficiente pra impressionar um bando de pessoas não impressionadas pela vida. E, de um modo geral, sempre conseguia.

Sem contar nós quatro, Dani, Ely, Ana e eu, que invariavelmente estávamos lá, outras pessoas iam aparecendo, nunca éramos muitos, mas éramos absolutamente substituíveis, em uma turma de quinze pessoas, no máximo, revezávamos a função de cada um em cada encontro. Às vezes eu era poeta. Às vezes eu tinha dinheiro e bebida. Em outras levava discos. Quase sempre aparecia só com a vontade de compartilhar algo que não sabia, e um tesão do caralho. Era sempre assim. Lugar nenhum era nossa Mecca, então, qualquer lugar poderia ser. Foi algo que me ocorreu, ali, ganhando um afago de uma garota que não sabia, ou não me recordava o nome. Não sobrava lugar para uma prece elaborada, ou para um cuidado transcendental com algo que não podíamos ver, estávamos todos ocupados demais, era preciso celebrar uma mediocridade infantil e divertida que enfiávamos goela abaixo sem muito jeito.

E, claro, nos entregar ao tédio para poder reclamar dele.

"Eu queria mostrar um disco ou um livro se um guarda de trânsito me pedisse a carteira de motorista... Seria tão lindo. Daí ele diria, ok, sei quem você, ficha limpa, mas fica longe dos mais vendidos da semana e do top 25 da billboard, hein? Daí eu arrancaria e em vinte minutos chegaria em Tramandaí, saindo de Belém Velho!" Claro que a idéia era maravilhosa, nos excitava deixar nosso gosto trabalhar pela nossa identidade, mascarar nossas marcas de vacina, chupões e sardas com tudo aquilo que a gente gastava e decorava da escrivaninha até a pele numa tatuagem cheia de uma mística inventada na hora. A menina da saia xadrez retrucou, por coinscidência, na mesma idéia que me batia. "Queria ser um disco do Chico." Falou se aproximando do rosto de Ana, sentindo a respiração constrangida e atiçada com a ponta do nariz.

“Tu gosta de bossa nova?” a voz saiu brincando, era mais flerte que interesse. Ajeitou a saia xadrez e deixou o rosto ficar não mais distante do que um dedo dos lábios de Ana. Entre uma ponta de inveja e a certeza de ela poderia deixar qualquer um de nós ali em farrapos de dignidade suada e gozada, me aventurei, ainda amargando o gosto da água suja que eu tinha que apelidar de uísque.

“Eu amo bossa nova...” Entreguei mordendo os lábios e soprando a fumaça do cigarro devagar. Mentindo a maior calma que eu conseguia.

Aí, faltou luz.

Ana gemeu como se alguma divindade tivesse ouvido sua prece, pude ouvir o estalido da saliva migrando de uma boca pra outra. Também pude ouvir Ely recitando um poema lindo do Léo Ferrér, algo que muito calhava ali, naquele momento, substituindo com perfeição as notas soltas do jazz que ouvíamos. Logo as luzes dos cigarros apareceram, imitavam vaga-lumes e pontilharam a noite feia e escurecida. Minha garganta parecia apertada, como se dela viesse o sentido de tudo aquilo. Claro que não vinha. Daniel abriu a garrafa de vinho que estava ali por perto e logo foi passando. Ninguém ousou derrubar nem uma gota, não era o sangue divino, e, francamente, com tudo que eu havia bebido já de uísque, não passava de algo viscoso e adstringente, mas que me era vendido especial.

No breu dos cigarros e das luzes de emergência do prédio do lado, consegui ver o Ely escrevendo algo na coxa e nas pernas de Ana com uma caneta esferográfica normal, seu rosto ingênuo e irreverente, rindo, balançando com cada palavra que manchava ali. De alguma forma aquilo apelava pro meu lado mais sensível, me excitava provocando uma resposta débil entre as pernas, amassada entre a cueca e o jeans. No meu mundo hipotético, tudo aquilo era registrado em uma película esmaecida de uma câmera barulhenta. Imagens amadoras que poderiam dar vida a qualquer projetor de filmes empoeirado num canto da casa. Para mim, aquela metáfora fuleira era quase transcendental, o ápice da minha genialidade enquanto ainda vestido. Quando nu, talvez me acanhasse num preto e branco vazado de fácil revelação e rápido esquecimento. Ou vice-versa.

A menina de saia desceu do sofá e sentou-se atrás de mim, pude sentir os seios dela nas minhas costas pela camisa. Um calafrio bobo me fez olhar pra trás para verificar se era ela mesma, claro que era. Não sei o que ela sussurrou no meu ouvido, mas, em seguida tomou um gole da garrafa de vinho e encostou os lábios nos meus. Metade daquele líquido bordô escorreu pelo meu peito e meu pescoço, outra parte caiu na minha garganta, já torpe e brincalhona. Alguém puxou uma canção ‘en route’, e cantou arrastando todos os versos sem querer dizer nada, mas, se impregnando do sentido da música. Talvez fosse Daniel, que ansioso esperava pelo retorno da garrafa de vinho, vagava no seu trotoir de baixo calão e na sua faceirice de comungar nossas vidas com ele. Ao mesmo tempo em que tudo aquilo me encantava, ainda me sentia cansado sem ter feito nada. Aos poucos ia deixando o corpo cair no dela, ali, atrás de mim, limpando os lábios com as costas da mão, insinuando que estava pronta para qualquer outra coisa, sempre pronta. Fui fechando os olhos, e, enquanto as mãos dela passeavam pelas bordas da minha camisa, me deixei tomar pelas sirenes que ululavam dentro de mim, o último retorno já figurava no meu retrovisor. Já era tarde demais para qualquer coisa. Lembro de os lábios dela serem fofos, como apertar algodão para tirar um pedaço do grande chumaço.

Até que a luz voltasse, e cada um pudesse assistir à solidão um do outro, tinha ali um mistério sem nome para resolver. Embora tudo girasse, algo que só o corpo bêbado e o gira-gira das crianças conseguisse reproduzir, havia uma leveza no ar, um sentimento parado, observando a gente ali, misturado com um perfume um bocado desconhecido que me acalmava, camomila talvez. Ela já não estava mais atrás de mim e a garrafa de vinho, quase vazia, fazia companhia pra minha ereção entre as pernas. Até que a luz voltasse, podíamos pintar com fantasia os crimes dos nossos desejos, e imagens aleatórias nos guiariam por entre aqueles cinco corpos sorrindo um pro outro sem se perceber.

(Originalmente um texto de 2009 repostado por gosto do autor)

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