quarta-feira, 26 de maio de 2010

Quarto Verbete


“Un poquito llorando”

Escrevi no papel metálico de dentro da carteira de cigarro. Dobrei aquela bobagem e coloquei dentro do caixão. Andei até a coroa de flores e peguei uma, quase qualquer, bom, não saberia dar-lhe nome nem em cem chances. Demorei até conseguir enfeitar minha camisa do jeito que queria. Na capela da frente, uma freira, bastante jovem e sem algum traço particular, começou a cantar uma ária que me esmurrou com a violência de um pugilista derrotado. Cada palavra entoada me soava hostil, violenta, mas incapaz de me tocar algum sentido.


Lascia ch'io pianga...” Eu sabia que se tratava de algo belo e cheio de súplica. Aliás, de um grande êxito da sensibilidade humana. A freira cantando aquilo com o coração apontado para Deus me pareceu fora do lugar. Faria mais sentido se fosse uma indigente rodeando Palermo, a Consolação, o SoHo, ou Belgrano na Capital Federal.


Enquanto esperava meu julgamento sobre aquela pobre coitada de boa voz se deslindar, retornei até o caixão, afaguei sua testa e comecei a observar uma série de arrependimentos que rodeavam aquele corpo morto, que teimava não perder o calor por benevolência da calefação. Meu suor confirmava essa impressão.

Es una forma...” pesquei o resto na anotação à lápis no verso da Bíblia “...sutil de gratitud. Murir dibujando una sonreisa.


Decorar as coisas que os outros escreviam me inibiu de me aventurar no teatro como teria gostado tanto. Mas me brindou um débil diploma de arquitetura que nunca coloquei em uso. Ali, velando aquele corpo sozinho, estava me sentenciando a assumir os papéis de cada um que não perdera seu tempo como eu em estar ali. Era gratificante e maravilhoso.


Empeza con un vaso. De cerveza y vazio. Esto, él libro santo no te vas a decir.” Olhei para o caixão para me certificar de que prestava atenção em mim. “Imagina mi pelo rubio.” A risada, não pude evitar. “Sabes de quien stoy hablando.”


Meu discurso desarrolló qasi azul. Ernesto não estava ali, mas teria um pouco a dizer. Iria recordar uma noite gasta ponderando sobre uma dramaturgia qualquer que tinham visto juntos. Ou perderia o tempo de todo mundo falando de alguma noite “Celoso. Solos, lejos de todo.” Emudeci. Dessas lembranças queria distância. E tinha vontade de gritar ali dentro quando me vi imitando o jeito que Ernesto coçava o bigode, embora eu não tivesse um.


Lorena certamente gostaria de estar ali. Eu e tu gostávamos de chamar ela de melhor amiga. Ela assassinava qualquer pudor com a delicadeza de uma borboleta, essas bem grandes que aparecem de noite. Enquanto pagávamos a bebida dela, e enquanto tivéssemos paciência para ouvir aquela bestialidade toda, não precisaríamos transar, nem ir ao banco, nem comer, muito menos dormir ou ouvir um disco. E a Lorena sempre vinha chorando pro nosso apartamento, na época que morávamos todos juntos, ela se esfregava embaixo do chuveiro, um pouco com roupa ainda, um pouco arrependida, insistia que não conseguia tirar o cheiro de preservativo do meio das pernas e que a mordida no seio provavelmente iria infeccionar. No meio disso ela virava na garganta metade do frasco de enxágüe bucal tentando se emprenhar de qualquer sorte de embriaguez. Por instinto, minha primeira reação sempre era aplaudir, depois, abraçar.


E nem eu nem tu descobrimos o que sentir por ela. Quando bateu na minha porta ontem, já sabia da tua morte. Ela não disse nada, apalpou meu bumbum com alguma graça e seguiu até o carrinho de bebidas perto da janela. She fixed herself a drink, took a poke out of an imaginary cigarette, shouted at the moon with no words whatsoever, sung a song with her fingers and brushed a smile off every tear she managed to let go” No melhor inglês que gostávamos de brincar. Não ousei oferecer o endereço ou o horário do velório, tinha certeza que Lorena celebraria tua morte de outra forma.


A morte não ensinava nenhuma sorte de perdão. Antes que pudesse cuspir no meu alvo dentro do caixão, ou invocar a memória de algum outro amigo, o Padre me interrompeu oferecendo condolência e um sorriso besta.


Solo puedes lamentar ahora.”

Os dois mil anos de ensino religioso que ele ostentava na barba bem feita e nos traços complacentes me davam asco. Davam vontade de arrancar-lhe a batina e esfregar-lhe a cara na madeira do caixão “Madeira de caixão tem gosto de uísque ruim?” borbulhava na minha língua a pergunta. Isso sim seria piedade. Mas, meu bom gosto me impedia. Me castrava, na verdade.

Es la muerte” e segui “tienes café?”

Vamos cerrar en un rato...”

“Perto tienes café?”

Mais um sorriso dele, agora desconfiado.


Porfírio, Ignácio, Camila. Queria te oferecer a memória deles antes que o Padre retornasse. A freira que cantava a ária fechou a capela onde estava. Olhou pra mim transbordando uma espécie de vergonha ingênua apontando pro relógio. Agora era muda. Talvez só soubesse cantar, talvez estivesse condenada apenas a cantar. Ou era uma mercenária que ganhava pra cantar no funeral dos outros. Essas sim, as eleitas pro coro de Deus, a tropa emburrada que nos ensina a cantar quando chegamos ao paraíso. Olhei para o caixão. “Te vas a aprender a cantar.” Juntei meu chapéu e olhei uma última vez, crente de que não seria a última. Tínhamos hora pra tudo, velar teu corpo não ia parar no meu currículo de bondades egoístas. Mas tinha sido um par de boas horas.


O Padre, a Freira e a xícara de café me escoltaram educadamente para fora dali. Claro que só restava lamentar. A Freira por sua ária. O Padre por algum bom grado levado às últimas conseqüências, o café pelo bom amargo que lhe camuflavam com açúcar. Por fim, eu, por desertar no meio da areia algo que tinha ganho de ti, num Setembro-Feira que nos levou pra bem longe sem pedir licença.

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