segunda-feira, 24 de maio de 2010

Terceiro Verbete

“Como tu me enrola. Vai, anda logo. Me diz, poxa, quanto tu precisa beber pra me falar uma coisa?”


Não dei bola para a pergunta. Aliás não dava nada. Queria ir até a praia. Por algum motivo a areia me chamava. Parecia enterrada nela alguma coisa que eu nem sabia que procurava. E talvez nem procurasse. No que me cabe, não gostava do cheiro da praia ou do mar. É dezembro, a coleção de penguins mortos boiando no vai-e-não-vem das ondas me oferecia um companheirismo adequado, mas longe do que eu ansiava.


“Não me toma por histérica, viu? Está tudo bem. Só queria sair um pouquinho, achei que tu ia ser uma boa companhia.” E o que eu havia acabado de dizer era tão vago quanto honesto. Mas eu insisti. “Talvez seja isso que esteja me irritando mais que tudo, isso de sair, te vir aqui como se fosse um ferrolho mágico. Sério, não me toma por louca...” Num descuido o adjetivo já era outro. “... Eu to um pouco de ressaca também. Isso não é problema, já foi, mas já não é mais.” Ele riu. Achou graça no meu pouco caso pelo que eu mesma dizia. “... O Mauro pagou a pensão desse mês e me adiantou a do outro, pelo menos isso.”


“Martina, eu disse que se tu fosse no banco tu podia...” Claro que eu peguei a mão dele no meio da frase, antes que ele pudesse lembrar qual conta queria que eu pagasse, num favor que era corriqueiro entre nós dois. Alguma coisa no rosto dele entendeu bem que eu não tinha ido ao banco. Nossa convivência envernizada derreteu um pouco, bruxuleou como vela de santo e deixou um perfume de cera queimada no ar, isso ou a fumaça dos cigarros da mesa ao lado trazidos pelo vento na nossa direção.


“Muito cedo pra primeira garrafa de vinho, minha amiga?” O esforço dele pra disfarçar o leve constrangimento era muito comovente. Queria saber como ele estava se ouvindo, como aquilo soava dentro dele. Assenti. Era bom fingir com ele, fingir que não sabíamos que o vinho que ia pousar na nossa mesa era um substituto pra alguma outra coisa, pessoa, enfim, que queríamos bem perto da boca, ali, antes, ou depois. Nosso pequeno elogio à vagueza.


Ele discursou alguma bobagem que eu não ouvi. Ele sempre dava a entender que estava certo sobre alguma coisa, não chegava a ser desagradável, era só saber viajar pra longe com o olhar ancorado na retina dele. Quando ele descambava pra um certo deslumbre desgostoso no canto da boca, aí sim, aí era o sinal para voltar e ver o que ele estava dizendo. E ele não me deixava interrompê-lo, queria dizer “Pablo, teu convite para o vinho me soou tão cheio de uma monarquia fajuta e divertida.” Ele colecionava esse tipo de conversa, elogio... Antes que eu pudesse mexer com ele, a garrafa de vinho aterrisou na nossa frente. Niágara, boa uva. Com ambas as palmas na mesa, como que prestando um juramento, Pablo arriscou meu fio de assunto e humor.

“... Ele foi levar pessoalmente, né?”


A cena merecia registro: Pablo parecia não acreditar no que havia dito, tentou esconder o rosto olhando pro sol, enrugando a cara e fingindo que minha resposta viria rapidamente. Eu simplesmente não quis ouvir a pergunta. O garçom, servindo nossas taças, fez o mesmo. Não. Fez mais. Deixou seus olhos correrem pelo meu decote procurando um pedaço de pele descoberto, um pedacinho da aureola do mamilo, tudo com o rabo do olho e como se fosse grande novidade. Não. Depois dos quarenta, e um par de orgasmos gêmeos, esse tipo de coisa não te engana mais. Tomei o olhar do garçom como lisonja junto com o primeiro gole de vinho, numa bem sucedida tentativa de fisgar meu quase-bom humor. Mesmo assim, eu queria a praia e ignorar o que o Pablo havia dito. Nadar nua com os peguins mortos e deixar o sol, que tinha se escondido o inverno inteiro, tocar meu corpo sem nenhuma sorte de preconceito. Péssima nadadora, me dava melhor interrompendo os curtos goles de vinho do Pablo.


“Pablo, que espécie de conversa a gente quer ter?” E fui perdendo um pouco de mim enquanto ia esperando a resposta, mordi o lábio botei na mesa uma nota de cinqüenta. Queria dizer que era o dinheiro do Mauro que iria pagar o nosso vinho. E ele sabia disso, aposto que queria amassar a nota e jogar na minha cara. Isso, claro, com a integridade que nossa amizade oferecia. No fim ele se limitou a me encarar guardando o dinheiro, cruzando as pernas e olhando pra longe. Aí era minha vez de repousar as mãos na mesa, só pra provar que não tinha os dedos trançados pra oferecer uma meninice fora de temporada.

Pablo rascunhou algo na minha mão com os dedos grossos dele, mas não o deixei por muito tempo.


“Ele não é mais meu marido. Uma vez por mês ele paga a pensão dos meus filhos, aí ele me lembra que é meu ex-marido. Ele leva a Júlia e o Fabinho embora e por um fim de semana eu sou. Sein, mein liebe. To be. Daí eu coloco um filme com a Irene Jacob, faço cara de entendida e encaro o balde de pipoca entre as minhas pernas, aliás, o balde de pipoca sendo a única coisa interessante entre a porcaria das minhas coxas o fim de semana inteiro.”


Um gole rápido de vinho. Língua, dentes, depois de um julgamento favorável, alço ao céu-da-boca o gosto frutoso no mais redentor gesto que posso oferecer. Aí eu continuo.

“... Eu te disse pra não me tomar por idiota.” Terceiro adjetivo perdido no que eu estava tentando ser. “Não me olha assim, me cobrando coerência... Eu transo com ele. Não porque sou dominadora e tenho o pintinho frágil dele na minha mão. Muito menos pelo dinheiro que ele deposita, às vezes na conta, às vezes embaixo da minha chave na saída da porta. Não me olha com essa cara de que é bem isso aí, nem começa...” Aí eu dou de ombros. “É fácil. Simplesmente assim.”


Mais um gole de vinho, agora em par, ambos pra me ajudar a contornar a miríade de feições jorrando como coriza no rosto do Pablo. Consigo ver o interesse, o nojo, o fascínio, um pouquinho de prazer degradante, culpa, gozo de corno, e uma cumplicidade. Mesmo incomodado por nada, sei que ele não me julga.

“É bem isso. É fácil. Não pela intimidade, ou uma afetação demente que a gente vai cultivando desde a adolescência. E eu sou rainha disso. Não é cômodo, e a facilidade não é por ele saber do que eu gosto ou não... Não tem nada a ver com isso, pensa com a cabeça de cima, Pablo...”


Essa é a deixa para ele me escarrar de exagerada e histérica, se levantar e me deixar com a conta do vinho e o dinheiro do Mauro. Na minha taça, uns pedacinhos da rolha bóiam como os malditos penguins mortos do litoral em dezembro. O Pablo toma o vinho dele, mostra os dentes amarelados na mais gloriosa derrota pessoal. Ele não me censura, nem sequer esconde o flerte com meu exagero. O silêncio dele é encantador. Doze anos mais novo e o silencio dele, dolorido e inseguro podia virar até troféu de uma premiação de pouca importância. Sem grande prestígio ele arrisca um sorriso enquanto larga a taça. Eu não me seguro.

“Vai beber e me olhar com cara de quem não entendeu até quando, bem?”


Pupilo. Servindo um pouco mais de vinho, Pablo despeja junto um suspiro muito interessado e um pouco contrariado. Dou de ombros pela enésima vez no dia e colo os óculos escuros no topo do nariz. Tento lembrar qual decoração a Júlia queria pro aniversário dela e acompanho o ciclo do semáforo dou outro lado da rua. Deixo o pescoço cair pro lado do sol e digo quase só pra mim, mas alto o suficiente pra pontuar a conversa “Ele não tem a pressão de ficar ou de ir embora. De ser meu, ou de dar boa noite pras crianças. Isso deixa ele um pouco mais competente na cama.”


Quase vejo a ereção dele meio blasé embaixo da mesa. Ele interrompe o meu barato.

“A gente só fala disso se tu quiser, Martina.”

“A perversão é brinde, agora?”

“Deixa pra lá, Martina...” Eu odeio quando ele fica me chamando pelo nome. Parece tão formal, não combina nada com ele.


Tomei um gole da garrafa, antes de nos servir, retribuindo a gentileza. O sorriso do Pablo vem num desaforo quase desabafo. Ele bebe da minha taça, coloca os lábios em cima da marca de batom.

“Não me toma por histérica, meu bem.”

“Tu já não me pediu isso hoje?”

“Não, acredito que não.”

“Tenho uma vaga familiaridade.”

“Tem batom na tua boca.”

“Ah, é?”

“Andou beijando alguém, no meio da rua, no meio do sol?”

“Uma histérica. Será que é contagioso?”

“Não, acho que não. Mas elas são as piores!” Ele me tira a franja de cima dos óculos, eu sigo “Então, será que não foi sem querer que tu tomou da minha taça, tava aí, planejando um gracejo pra disfarçar...”

“Só uma velha pra chamar isso de gracejo.” Depois de beber da outra taça, continuou “A gente já fez alguma coisa sem querer um pro outro?”

“Não, Pablo, e é por isso que a gente não se ama, é por isso que a gente é amigo.”


A risada bêbada dele parecia pré-programada. Tentou atravessar a mesa pra me beijar como se fosse uma avenida movimentada, nossa gargalhada impediu qualquer espécie de contato.

“Escuta, beijoqueiro, quer ir pra praia?”

“Não me diz que era esse o teu problema ontem?”

“É, eu não tenho biquíni.”

“Nem, eu.”

Foi aí que Pablo me devolveu um silêncio que eu havia emprestado pra ele há alguns dias, no enterro de seu avô ou de cueca na sala. Já não me recordava direito. Na minha indelicadeza, fiz questão de interromper a nós dois.

“Tá decidindo?” E fiquei cutucando ele feito criança, até atirei um guardanapo amassado no rosto dele.

“Tô sim.”

“Se vai ou não pra praia comigo?”

“Não, se quero outra garrafa de vinho. A coisa da praia eu já decidi.”

“E quer?”

“Claro.”

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