segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Quando o ensaio acaba, ficam as bailarinas

As sapatilhas da boa bailarina têm cheiro de sangue. Acho que nunca vou me esquecer de quando li essa frase escrita em batom no espelho da sala de ensaios. Minha mãe achou que eu ia gostar de dançar, de ser magra e ter uma boa postura. Para que curso errado uma infância e adolescência inteiras dançando balé poderiam levar uma menina? O sucesso morava nas pontas de nossos pés, não tinha nada a ver com nosso coração, dizia nosso professor, com o sotaque carregado de algum país que não existe mais.

Só mais uma hora, pedia ele para nossas mães e pais. Os ensaios passaram de duas para três horas. De três horas para meio turno, então para o turno duplo a cada dois dias. Nas semanas antes de espetáculo, três turnos diários. Éramos o fetiche dos olhos de uma manada de observadores desinformados. Cada passo que eu executava, cada solo artesanalmente pensado, afundava no imaginário de quem me olhava. Aquela dança entorpecida se ancorava em algum julgamento besta e vulgar e então caía no esquecimento, dando lugar aos dilemas de onde a pessoa jantaria, ou quem ela levaria para o motel no fim de semana, a amante ou a esposa.

“Aquela ali, do solo no segundo ato. Bonita ela, deve trepar bem, imagina uma mulher dessas na cama? Ainda guriazinha e já abre as pernas desse jeito! Porra, esse espetáculo tinha que ter três horas? Quem foi que escreveu isso? Será que é muito deselegante sair no meio do espetáculo? Eu liguei o alarme do carro? Ô porra... esse magrão com ela deve ser viado, homem bailarino é tudo viado, aposto que já viu ela pelada e nada, nem ficou de pau duro.” Viva os apreciadores de arte e suas libidos disfarçadas de interesse e arrogância.

Enquanto ensaiamos, o professor prepara o discurso que abre a peça. “Hoje, apresentamos pra vocês, o espetáculo da nossa própria decadência.”

Seria lindo se fosse assim. Se cada erro no palco virasse uma nova dança. Se o pianista morresse durante a execução da obra e nós fossemos obrigadas a dançar velando seu silêncio. Às vezes eu acho que, para a dança, não há uma espécie de alívio ou recompensa na morte. Há apenas um desmanche de uma razão ingênua que se aninha entre a meia e a sapatilha.

Eu sou muda e não escuto nada bem, mas eu sou a melhor. A hipocrisia da minha dificuldade me faz tentar de um jeito mais árduo do que as outras meninas. Eu não tenho a escolha de gritar quando eu erro, de cantar a harmonia que ensaio enquanto me mexo num ritmo difícil e genial. Se me fosse dada a escolha de não dançar, eu não saberia reconhecer ela. Enquanto eu danço, as regras de percepção do mundo ao meu redor vão mudando e se escondendo.

“Ela tem que conseguir.” É o que eu ouço pelas portas e pelas paredes, leio nos lábios ao longe. Quem olha de fora, acha que é incentivo. E se ela não conseguir? E se ela for uma funcionária pública, que consegue as coisas pela via das necessidades especiais? Se ela renunciar a humanidade dela no anonimato e viver sem o prestígio do êxito? Não, a vida espera que ela supere tudo e todos. Que apareça em algum programa de tevê contando sua história de superação. Se mostre igual num mundo que se difere pelas indiferenças e projeções. Melhor ainda, e se ela fosse uma bailarina medíocre?

Para quem sofre, existem inúmeras opções. Todas travestidas em cores reluzentes de resultados iguais.

Eu gosto de transar, como qualquer uma. Até mais, às vezes. Mas nenhum cara tem coragem de dizer que meus gemidos guturais e deformados acabam com qualquer clima de sensualidade e intimidade. Brocha mesmo. Meus gemidos assustam porque parecem dor ou um retardo mental. Mas, enquanto a coreografia estiver certa, isso não importa. Se o público fica satisfeito com o que acha que entendeu, não importa o sexo, missão cumprida. A mudinha pode ir pra casa com a sensação de dever cumprido, não importa se tem alguém pra levar ela ou se ela tem que ir de ônibus, se ela vai jantar fora ou com uma vizinha, uma velha portuguesa de antes da primeira guerra. E não importa se tem alguém pra comer ela e ouvir e gostar dos seus gemidos. Há a dança e seu clímax elíptico de fácil reprodução.

Minhas entrevistas, depois dos espetáculos, são as melhores. Um sorriso silencioso, alguns gestos com as mãos e pronto, as pessoas caem em lágrimas. “Ela é mudinha, mas dança tão bem.”

Algumas pessoas não entendem que eu não danço com a boca, e, se eu digo isso pra elas, eu sou mal educada. Claro, a educação me diz que devem ter pena de mim e que tudo que eu consigo tem mais valor. Não importa se eu passo horas dançando na minha sala, com os móveis afastados, nem se eu só volto a sentir meus pés duas horas depois do fim do espetáculo. No fundo eles gostariam de me colocar numa jaula ou expor em um museu. “Esta é uma conquista da humanidade. A bailarina muda. Apreciem e não tirem fotos, ela não gosta do flash.”

A escolha é uma mentira. Qualquer coisa que eu escolhesse, carregaria a praga da pena e do dó de quem olha. Na dança ainda tem o tesão do olhar vesgo do espectador, que tem mil teorias sobre os temas da música e da coreografia, mas não acredita na poesia individual de cada movimento, se dispersando na corte da razão, nos olhos invejosos de velhas sem talento e na mazela da paranóia de cada um, vista como civilidade pelos outros ao redor.

Eu não quero aceitação, não estou tentando fazer parte de nenhum clube. Não quero reparar minha amartia disfarçada de arte, pois meu destino não tem nada de trágico. Também não quero alguém me dizendo que tudo que eu quero é ser ouvida. Eu só quero a dança. É simples e sei que existe uma insanidade na simplicidade do desejo.

A dança me basta. Eu danço para ser. A minha verdade está no sangue que escorre pela borda da unha e mancha as meias e as sapatilhas, mas eu sei que a verdade pouco importa, e que a coreografia não quer dizer nada para ninguém em especial, só pra quem quer ver. Meu universo tem um velo contraditório que amarra o mundo. Essa dança muda existe por minha causa, eu moro nessa reciprocidade.

A sapatilha da boa bailarina tem cheiro de sangue. A primeira vez que eu li, me deu medo. Tentei sonhar que aquilo era uma mentira para intimidar as meninas arrogantes. Me dei conta de que era verdade no meio da fábula que as pessoas apreciavam e aplaudiam com o protocolo embaixo do braço.

Meus passos são um fluxo inconsciente na direção contrária do tempo, se afastando ao chegar perto do momento que marca o fim da coreografia, aí eu danço até cair, perco os sentidos sem me preocupar em achá-los novamente. O aroma de sangue impregnado no ar me faz companhia. Se mistura com o perfume das flores que enfeitam a sala. Quando despertar, haverá uma nova rotina me esperando. Caso não desperte, vou descobrir o quão aveludado é o toque de espírito que carrega a perda da consciência de si mesmo, seja pela morte ou pela derradeira vitória da loucura.

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