sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Pont Neuf, Pinot Noir...

Eu sei. Claro que o conforto do meu sofá me leva a achar que eu sei. Dou boas vindas à leve embriaguez do início de noite com o balançar da minha taça de vinho. As cortinas vermelhas parecem mais bonitinhas que o normal, banham de ruby a sala por causa do outdoor iluminado que brilha na janela. Eu fico balançando com meu pé, atirado por cima do sofá, meio querendo pular da janela, meio sem pretensão alguma.
“Humpf” Num quase sorriso, brincando com o girar da taça.

Aí eu levanto num gesto rápido e desmedido, já engolindo o resto de vinho e descansando a porcaria da taça em cima da capa de um LP. “Porra, esse LP...” Mas já é assunto velho, eu levanto o volume do som e deixo o chiado da agulha fazer companhia aos trompetes já decorados. Eu me apóio sobre os joelhos e dou um leve abraço na caixa de som. “Miles, tu tá aí ainda?” E com uma gargalhada já vou me erguendo em direção do Pinot Noir me esperando numa garrafa verde, linda. Linda e aberta. Olho pro relógio e desconfio que está me mentindo, não podem ser só nove horas da noite, o sono ainda não veio, a janta já passou há muito tempo, o jornal tedioso – que eu fiz questão de assistir no mudo, caso tu queira saber – já terminou. Porcaria de horário de verão.

Eu pego mais vinho. Claro, eu sempre pego mais vinho, principalmente assim, sozinho, sem ninguém pra se incomodar com a minha bebedeira, meu ar blasé com o cigarrinho na mão e meus sorrisos ingratos, disfarçados num pequeno arco de lábios. Os gatos já foram dormir – eu os deveria imitar, no fundo – e tu conhece bem a minha paranóia, eu fico tentando pensar e pensar. Até que eu me masturbe e caia numa agonia adocicada e suada no sofá. Não, essa noite bonita tem outra cara. Não tem nada a ver com meu tesão intransigente e teu corpo jogado contra meu armário, minha mão desajeitada procurando o fim da tua saia e teu rostinho de perfil tateando pela minha língua num beijo absolutamente didático. “Meu amor, por favor, me beija assim que me dá aquele tesão.”

“Há, não, meu caro, hoje não...” Hoje não funciona assim, adorable as it might be, eu prefiro me estacionar aqui no meu sofá, encarar a sala e os trompetes que me buzinam o ouvido sans la sourdine.

Por um longo instante, me convenço dos meus poderes charlatães e consigo uma visão tua. É inverno, mas não tá tão frio. Tu tá vestindo aquele casaco pesado teu, por cima de uma blusa creme. Por baixo, uma saia rosa, uma que eu gosto bastante. Tu pede para um casal polonês, amistoso, porém reservado, tirar uma foto tua, e tu te apóia na porcaria da Pont Neuf, Paris ao fundo, e sorri. O enquadramento é péssimo, muito teto, muito de longe. Mas eu sei que é tu. É triste reconhecer pessoas em fotos mal tiradas. Os poloneses acenam e te devolvem a câmera. “Do widzenia” dizem eles gentilmente, tu maneja um “Tschüss” torcendo para que eles entendam alemão. Eles continuam o trotar feliz pela rua e tu logo leva a mão até a boca e deixa os cabelos caírem para frente. “Merda” Tu maneja dizer, em boníssimo português.

E então é atacada por uma súbita vergonha. Lá vem a gafe. Porque infernos tu dá tchau em alemão para um polonês? Proximidade geográfica da língua? Indelicadeza com a deprimente meretriz histórica de russos, alemães e eslavos? Pobre Polônia, tu pensa. Até olhar pra foto... E vê que tá uma bosta. E que tua foto de recordação faz a Pont Neuf parecer a Ponte de Pedra aqui do lado, no centro. Daí tu te lembra que tá com fome, e que adoraria comer umas brusquetas com cerveja leve, sim, um bom almoço, um bom projeto de almoço pra esquecer a Pont Neuf. Pra esquecer Porto Alegre.
Aí eu abdico dos meus poderes, honestamente com medo de encontrar a tua companhia te esperando numa mesinha em La Defense – aliás Paris-La Defense, já que eles ganharam o direito constitucional de se chamarem assim... –, e é aquele restaurante. Aquele. Um lugarzinho simpático que serve comida mediterrânea. E o rapaz lá, com um sorriso fácil e dócil, te esperando com um papo cabeça e um perfume agradável. E ele fica lá te esperando, com a perninha cruzada e o Le Monde na frente, todo aberto, mas ele diz que só lê a parte da cultura, porque ele é simpatizante do Frédèric Mitterrand.

“Grande bosta...” Digo eu, num bom português.

Daí eu acendo mais um cigarro metido à besta e jogo o isqueiro por sobre o sofá. Tento forçar um sorriso pro reflexo no vidro do armário de bebidas, mas parece algo descabido. Me esforço pra lembrar se escrevi em algum lugar alguma vontade triste, sem mala pra me esconder, sem nada pra jogar pra cima e mandar à merda.

Tiro a camisa e fico andando de um lado para o outro de jeans e pés descalços. Até penso em tirar uma foto minha e te mandar, num email sucinto, como se fosse um breve comentário de uma obra de arte. Os trompetes cessam. A agulha arranha o fim do disco.

Daí eu lembro daquele dia que eu te disse que tinha feito uma bossa. E que cantei pra ti num silêncio tão triste... Não parecia saudade, parecia um dramalhão mexicano versão copacabana.

Cantando. “Não me vais, não me vais, só me deixa dizer que fica um sorriso pro fim, um final feliz com alguma coisa pra beber, um último bis, encore, encore, paris je te aime.”

Só depois disso eu consigui ver Paris tão distante, longe, com um oceano no meio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário