domingo, 15 de janeiro de 2012

Boa noite, branca de neve

Mentir dizendo que se abre mão da verdade ainda é uma maneira de preferir algo, mesmo não se dando conta ou se convencendo do contrário. Existe uma sinceridade gasta nesses gestos e frases sem grande preocupação com a honestidade. Não fazem par com nada, não dão “bom dia”, muito menos expressam a gratidão infantil e débil de que todos parecem tanto sentir falta. É um amor ligeiro, de intervalo comercial, inventado e pautado pelo crime que encabeça o noticiário: Hoje, às nove e cinquenta da noite aconteceu o estupro da fantasia pelo desejo. Mais notícias no seu jornal local após a novela das oito às nove e quinze.

“Essa gente carente me cansa. O jornal também, assim que ele começa me dá a sensação de que já vi esse episódio, será que falta muito para a próxima temporada?”

Das janelas do prédio da frente consigo assistir amores fartos de falta de sincronia, síncopes de uma cumplicidade bandida. Um amor de outro alguém, travestido num beijo regurgitado e expulso com uma ardência um bocado familiar. As primeiras gotas de suor caem por sobre as unhas no sofá atrapalhando a vista bucólica da sala de estar. O verde do musgo das paredes, o pé de maconha num canto, os gerânios em coma no outro, o manjericão ressecado pendurado no lustre. É praticamente uma pintura impressionista, a única coisa faltando é a impressão de alguém.

“Pra que tanta ironia hoje?...”

Nada se aninha, descrevo a libido com o batom de alguém no lençol jogado por cima do guarda-corpo na janela. Caio na tentação de descrever o batom de alguém com o pouco de libido que ainda resta. Acabo descrevendo o lençol com a libido de alguém com o pouco de batom que me resta no canto da boca. A luz do abajur pisca, oscila junto com a corrente elétrica e a constante ameaça dos blackouts de verão, meu corpo se estremesse interpretando isso como um toque de recolher. As roupas despencam do corpo e dão lugar a outros pudores mínimos. O ritual inevitável avança pelo terrível segundo ato.

Enxaguo os remédios, recentemente prescritos, goela abaixo com resto de água da máquina de lavar louça. É a deixa para a interminável sequência de derrotas minimalistas. Os pés, as pálpebras, todos tombam. Minha alma me olha e me julga enquanto estaciona sua cadeira de rodas num canto perto do marco da porta. Ela ri da minha paranóia e me condena ao mundo do indesejável, das coisas impróprias, da mais absoluta tirania que é desejar exatamente aquilo que se merece. Aos Deuses já devo, em promessas e moeda local, mais de um par de vidas inteiras vividas sem doença, sem suicídio. São inúmeras condenações a existir do início ao fim, mas sempre com a mira de alguém bolinando o crânio, sem perceber ou ser visto. Sem ter um instrumento pra imaginar a hora do disparo. Muito menos abstrair sua existência. Harmonia, alegria, viva Maria la Santa.

Eu transpiro, encharco o carpete, a cama e os azulejos brancos do banheiro. “Pro ar entrar...” ele tem que sair. E sai como se fosse um pingo de alegria torpe. A euforia cavalga pelas risadas sem pé nem cabeça mas com um belo corpo. Me escuto num murmúrio quase miado, adequando o sorriso à inevitável derrota da mente desperta se despedindo. “Só mais um amor rápido. Uma paixão ligeira. Inventada. Só mais uma. Só por hoje.”

Só por hoje.

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